Alain (Émile Chartier) (1900) « O problema da percepção »
Um documento produzido em versão digital por
Bertrand Gibier,
professor voluntário de filosofia no Colégio de
Montreueil-sur-Mer (em Pas-de-calais).
Correio eletrônico: bertrand.gibier@ac-lille.fr
Como parte da coleção: “Os
clássicos das ciências sociais”
Site web:
http://www.uqac.uquebec.ca/zone30/Classiques_des_sciences_sociales/index.html
Fundada e dirigia por Jean-Marie Tremblay,
Professor de sociologia no Cégep de Chicoutimi
Uma coleção desenvolvida em colaboração com a
Biblioteca
Paul-Émile-Boulet da Universidade de Québec em Chicoutimi
Traduzido para o português em janeiro e fevereiro de
2012 por:
Miraldo Antoninho Ohse,
Correio eletrônico: ohsepoa@gmail.com
Site web:
Blogs:
Esta
edição foi realizada por Bertrand Gibier, voluntário
Professor
de filosofia Colégio de Montreueil-sur-Mer (em Pas-de-calais),
a partir de:
Alain
(Émile CHARTIER), (1900)
« O problema da percepção »
Uma
edição eletrônica realizada a partir dos discursos de d’Alain (Émile
Chartier)
(1900), “O problema da percepção” na Revista de Metafísica e
Moral,
novembro de 1900 (VIIIe ano), pp. 745-754.
Política
dos caracteres utilizados:
Para
o texto: Times, 12 pontos.
Para
as notas de rodapé: Times, 8 pontos.
Edição concluída em 25 de julho de 2003
em Chicoutimi, Québec.
Émile CHARTIER
OS PROBLEMAS DA PERCEPÇÃO
REVISTA DE
METAFÍSICA E DE MORAL,
Tomo VIII, novembro
de 1900, PP. 745-754.
O senso comum não vê na percepção
nenhum problema. Ele aumenta quando perceber é uma função simples e imediata, por
efeito do qual as coisas estão presentes no pensamento, tais como elas são e
todas feitas, com suas qualidades, suas dimensões, sua forma, suas distâncias
respectivas e suas posições.
Mas a reflexão demonstra a
insuficiência desta concepção. Com efeito, é evidente que certas percepções,
que se parecem imediatas, são, todavia, adquiridas, ou seja, não inatas. Eu
vejo um cubo de pedra e me parece que eu o vejo imediatamente se destacar no
relevo sobre o solo. No entanto, isto que eu vejo deste cubo não difere em nada
de um desenho traçado sobre um plano e que me representa este cubo em perspectiva. Isso
demonstra que eu posso aí me enganar, e considerar como um relevo um desenho
habilmente traçado num plano, já que eu posso ver o relevo sem que o cubo exista.
Logo, o cubo não é transmitido pela vista, mas ao contrário, o pensamento o
acrescenta às coisas, ou seja, naquilo que é transmitido pela vista e como uma
consequência destes dados.
Em geral, todas as vezes que um
dos meus sentidos me engana, devo concluir que isto sobre o qual me engano não
é dado tal como o percebo (sem o que a percepção seria verdadeira). Se os
sentimentos não me fizessem perceber o que dele é dado, eles não me enganariam;
ou melhor, se eu não percebia o que é dado aos meus sentidos, tudo o que eu percebesse
seria real por definição. Errar supõe invenção, adição, modificação, criação.
Mas todos os sentidos são capazes
de nos enganar, donde é razoável concluir que a maior parte das percepções que
se parecem imediatas são, na realidade, o resultado de uma educação da qual a
memória não guarda os traços e que antes de aprender a pensar, nós temos de
aprender a distinguir.
Mas como fazer a separação do que
é comunicado daquilo que é adquirido? É bastante para isso estudar umas após as
outras as ilusões conhecidas, de descobrir todo um sistema de raciocínios
escondidos, e concluir que o espírito,
na percepção, é até um certo ponto ativo? Por este método de simples enumeração,
nós estamos condenados a ignorar porque a atividade do espírito é necessária, e
quais são os limites de sua intervenção. É-nos necessário, pois, em lugar de
registrar os fatos, buscar a nécessaire
(o essencial, o indispensável), e nos perguntar o que pode ser dado, e o que não
pode ser dado, sendo necessariamente adquirido.
Os objetos cujo conjunto constitui
o mundo são conhecidos como distintos uns dos outros; como situados, em relação
a nós e em relação aos outros, em certas distâncias, como caracterizados por
dimensões determinadas, uma certa forma, um certo peso, uma certa solidez ou
resistência, uma temperatura determinada, uma cor, um odor, um sabor, uma
sonoridade.
A noção de objetos distintos é
necessariamente adquirida, ou seja, supõe necessariamente certas experiências.
Com efeito, nós percebemos bem nas mudanças mais ou menos bruscas, mas não nas
interrupções, nos vazios, ou seja, nas separações verdadeiras entre as coisas,
de tal maneira que nada não nos diz em primeira inspeção que a mesa, o livro, e
o ar frio que rodeia a tudo, não são um só e mesmo objeto. Para conhecer um
objeto como distinto dos outros, como tendo uma unidade, como formando um todo
completo, é necessário o ter visto mudar de local sem mudar de natureza, ou melhor
ainda, ter mudado ele mesmo de lugar. Nós chegamos em seguida, por analogia, em
conceber como distintos, ou seja, como transportáveis, os objetos que se não
podem pensar em transportar, como as casas, uma montanha (1).
A noção da distância que nos
separa dos objetos é necessariamente adquirida. Notamos, primeiro, que ela não
pode nos ser dada, nem para o tato, nem para o gosto, os quais exigem o contato
e que, por conseguinte, não nos fazem naturalmente conhecer que os objetos
situados a uma distância nula, em outros termos, do exercício destes sentidos
não podem resultar os dois conhecimentos imediatos que resultam da mudança das
percepções: a ideia de alguma coisa do presente e a ideia de alguma coisa
ausente, mas ausente não quer dizer distante, pois distante é alguma coisa mais
além e significa mediatamente presente. É necessário então, para representar um
objeto como distante, saber, ao mesmo tempo, que ele está ausente e que pode retornar
novamente ao presente por efeito dum certo movimento após algum de uma séria
determinada de percepções. Isto supõe que se tenha aprendido a conhecer esta
série, que se tenha experimentado sobre este movimento, isto significa que a
noção de distância é adquirida.
O olfato e o ouvido nos permitem conhecer,
no odor ou no ruído, um objeto distante ao tato; mas este conhecimento não é, evidentemente,
nem imediato nem primitivo; nós começamos por
________________________________
(1)
É da ideia do
objeto transportável dum lugar a outro, ou seja, de um grupo em outro grupo, e
da generalização desta ideia que vem a estranha noção da divisibilidade do
espaço. Representar-se a divisão de um espaço, é se representar suas partes
como transportáveis, como móveis, como separáveis umas das outras. Em realidade,
o espaço não é divisível no sentido próprio da palavra, porque sendo homogêneo,
ele não se presta a nenhuma transposição efetiva de suas partes, e também, e
sobretudo, porque ele é ele-mesmo o lugar e como a substância nas
transposições, e que, por conseguinte, quando tudo é transposto, ele-mesmo
resta no lugar e todas as suas partes conservam suas relações respectivas de
posição. Nós podemos fazer mover um objeto da direita para a esquerda, mas
ainda é preciso que exista, antes, durante e depois esta ação, existência
permanente de um espaço a direita, de um espaço a esquerda e de um espaço
intermediário. A noção de espaço é a noção de possibilidade do transporte de
uma coisa e quando nós queremos prolongar o espaço mais além de todo o limite,
nós representamos o transporte possível de um objeto num certo sentido
indefinidamente. É-nos, então, impossível de imaginar, nem de conceber a menor
transposição, a menor mobilidade de uma parte qualquer no espaço, pois o espaço
é o juiz, ou se nós quisermos a arena do movimento É necessário então que ele seja
imóvel.
conhecer um odor presente, um som presente, um e outro
situados numa distância nula; é alguma coisa de uma educação onde nós chegamos
a estabelecer uma relação entre estas percepções e a existência de um corpo
situado numa certa distância para nosso toque.
A visão parece nos fazer conhecer
imediatamente os objetos como distantes em relação a nós. Na realidade, não é
nada disso. Os objetos que nós vemos estão todos presentes, já que nós os
vemos; logo, eles estão todos, para nossa vista, a uma distância nula. Somente aprendemos
a estabelecer uma relação entre estas percepções visuais presentes e as
percepções tácteis somente possíveis por efeito de certos movimentos. Em outros
termos, nós julgamos pela visão que os objetos, não distantes para a vista,
estão distantes para o toque. Porém, esta noção de distância se fundamenta nas
experiências. Ela é necessariamente adquirida.
A noção da distância que separa
os objetos uns dos outros não pode ser dada imediatamente quando os dois
objetos são conhecidos ao mesmo tempo, pois o conhecimento de uma distância
como dada supõe o conhecimento dos dois termos extremos desta distância.
O ouvido, o olfato e o gosto não
são pontos capazes de nos fazer conhecer ao mesmo tempo dois objetos distintos,
pois dois sabores simultâneos, dois odores simultâneos se fundem num só, dois
sons simultâneos formam um acorde, consonante ou dissonante. Por isso, por meio
destes sentidos nós não podemos conhecer as diferenças senão na sucessão. Por
conseguinte, o conhecimento de um dos termos extremos, de uma distância
excluindo o conhecimento de outra, jamais a distância entre dois objetos não poderá
ser alcançada diretamente por nenhum destes sentidos.
Ele não parece ser o mesmo para a
vista, pois duas cores semelhantes podem ser conhecidas simultaneamente sem se
superpor para formar uma cor composta. Então a vista parece poder fazer
conhecer, ao mesmo tempo, dois objetos como distintos e, no mesmo golpe, a
distância que os separa. Observamos, no entanto, que este poder da visão, na suposição
que existe, está encerrado em limites muitos estreitos, pois logo que dois
pontos A e B são separados por uma distância aparente um pouco considerável
(tal como 3 metros
a dois passos de distância) torna-se impossível à visão conhecer todos os dois
ao mesmo tempo. Ela não os conhece senão sucessivamente e, por conseguinte,
longe de prender de um só golpe a distância que os separa, ela não prende em
cada instante uma parte deixando andar aos outros, de tal maneira que jamais
esta distância não lhe é dada. De onde é necessário concluir que, todas as
vezes que dois objetos distintos A e B nãopodem ser conhecidos senão
sucessivamente e por um movimento dos olhos, a distância AB não pode de nenhuma
maneira ser dada como objeto à vista.
Consideremos, pois, dois pontos A
e B muito afastados um do outro. Aproximamo-los um do outro num movimento
contínuo. Chegará um momento onde a distância AB, em primeiro lugar, percorre
sem cessar, imperceptível e fugaz, aparecendo e desaparecendo a cada instante,
deixando-se enfim apanhar de um só olhar no campo visual. Mas é impossível de
dizer em qual momento preciso esta percepção direta e imediata da distância AB
torna-se possível. Se existia realmente uma diferença radical, uma diferença de
natureza entre a percepção de AB e a percepção de A’ e B’, quando se passa de
um gênero de percepção a outro, nós não deixaremos de aperceber e de
experimentar uma brusca mudança. Portanto, não é nada disso. Donde nós podemos
concluir, sem arriscar muito de nos enganar, que os pontos A’B’, tão próximos que
sejam, não são jamais conhecidos rigorosamente ao mesmo tempo, e que a distância
A’B’, tão pequena que seja, não pode jamais ser percebida senão se a vista a
percorrer por um movimento. Unicamente, estes movimentos tornando-se mais e
mais pequenos a medida que a distância diminui, são cada vez menos conscientes,
de tal sorte que nenhuma distância não será dada como objeto à vista.
Mas se é assim, o movimento dos
olhos seria a condição necessária de toda a percepção visual. Uma experiência
conhecida vem confirmar esta suposição e arruinar a crença contrária ao senso
comum. Nós sabemos que se alcançarmos a imobilização dos olhos de um sujeito,
seus outros sentidos não perceberão naquele momento nada de notável. Ele cessa
inteiramente de perceber, isto se exprime dizendo que ele dorme e seus olhos
tornam-se inúteis porque eles estão imóveis, se fazendo cair sob as pálpebras
tomando delas mesmas a posição de repouso.
O senso comum, assim despojando uma
certeza, se deixa menos facilmente inquietar em suas crenças habituais quando se trata de falar do tato, pois
aqui existe um fato a nos objetar: a mão, aplicada sobre um objeto, faz
conhecer imediatamente diferentes pontos deste objeto e da distância que os
separa; assim a distância, que para a visão é talvez uma noção adquirida, seria,
pelo menos, para o tato uma noção primitiva. O fato alegado não é, no entanto decisivo,
pois se eu posso agora perceber a distância para o toque, sem fazer nenhum
movimento, isso resulta talvez de que eu tenha aprendido a conhecer as
dimensões constantes das partes de meu corpo e particularmente de minha mão. Esta
ideia é tanto quanto mais verossímil que o conhecimento das distâncias pela mão
imóvel é muito imperfeita, enquanto que, ao contrário, nós vemos as mãos dos
cegos em um perpétuo movimento. Enfim, nós podemos ir ainda mais longe e
sustentar que a mão, mesmo aplicada sobre um objeto, não está necessariamente, na
verdade, toda de fato imóvel. Com efeito, suas partes são capazes, umas em
relação às outras, de pequenos movimentos que podem variar a cada instante as
pressões respectivas destas partes sobre o objeto, de tal modo que, mesmo
imóvel na aparência, a mão seria ainda capaz de percorrer o objeto.
As crenças naturais do leitor
sendo assim, sobre este ponto, abaladas, nos permitem produzir agora a prova
teórica adiante.
A distância, por sua própria natureza,
não pode nunca ser dada. Com efeito, para conhecer a distância é necessário
conhecer um objeto distante, ou seja, tal como não se possa o apanhar, o ter
presente, na transposição dum certo número de intermediários, porém se este
objeto está distante, é porque não o apanhamos atualmente. E se não o apanhamos
como objeto atual, não se pode mais apanhar como objeto atual a distância da
qual ele se acha, pois o que é a distância sem o objeto distante? Por
conseguinte, a distância não é nunca dada ao espírito, mas ao contrário é
necessariamente construída por ela por causa da educação. Por exemplo, na
presença dum certo número de objetos não distantes para a visão, o espírito
conclui que eles estão mais ou menos distantes para o toque e ele representa
está distância, donde resulta para ele a percepção visual do afastamento. A distância
não é, então, nunca dada: ela é sempre uma construção do espírito. (1)
_______________________________
(1)
O leitor, se
estiver um pouco iniciado em mais importantes problemas filosóficos, perceberá
facilmente o interesse desta análise, fora mesmo da questão especial da
percepção. Nós compreendemos, com efeito, agora que nem o espaço, que é o
sistema de todas as distâncias possíveis, nem as figuras, que são relações
determinadas entre as distâncias, nem a linha reta, que é a distância mesma,
nem as paralelas, que não são senão a noção de equidistância de duas retas, nem
são dos objetos dados na experiência, mas ao contrário, por natureza, e mesmo
na percepção, das construções do espírito, de sorte que o mundo exterior é
visto por nós através de um sistema de distancias definida por nós, ou, se nós
o quisermos, encerrado em um entrelaçamento de distâncias, ou, se nós
quisermos, organizado segundo a geometria. É em que pensava certamente o
ilustre filósofo Kant quando disse muito sucintamente, que o espaço é a forma
necessária do conhecimento sensível.
Acrescentamos, para terminar de
acalmar os escrúpulos do leitor diante de uma afirmação tão paradoxal, que, se
a distância fosse dada, dois objetos seriam conhecidos simultaneamente;
portanto conservaremos o termo simultaneamente para designar os objetos deste
gênero, em exclusão dos objetos conhecidos uns depois mais que outros. Porém,
ao contrário, nós apelamos à simultaneidade da sucessão regular, por exemplo,
dizendo que tal casa existe ao mesmo tempo que outra, quando nós representamos
a nós um caminho seguro e permanente para passar da percepção de uma à
percepção da outra. É por isso que nós não temos outro tipo da simultaneidade
que a sucessão regular; é por isso que dois objetos não nos são jamais dados
simultaneamente; é por isso que a distância não nos é jamais dada.
As consequências desta análise
dizendo respeito à distância são muito extensas e mostram por assim dizer delas
mesmas.
As dimensões não são, com efeito,
senão as distâncias entre certos pontos de um mesmo objeto. O conhecimento das
dimensões supõem então esses objetos distintos e de distâncias, ou seja, que
ela é adquirida e que supõe antes ela das noções adquiridas. É porque na
narração imaginária feita do primeiro despertar do primeiro homem, Buffon não devia
ter suposto o conhecimento das dimensões e das formas dos objetos. A forma de
um objeto não pode, com efeito, resultar senão do produto de suas principais
dimensões e, por conseguinte, o conhecimento desta forma supõe, além do conhecimento
das dimensões, um trabalho de comparação destas dimensões entre elas. O
conhecimento dos objetos como oblongos, arredondados, planos, etc... é então,
também, adquirida e de modo algum imediata e primitiva.
Chegamos agora ao exame das
qualidades ditas mais particularmente sensíveis, porque elas se traduzem em nós
pelos conhecimentos confusos nos quais a emoção agradável ou desagradável
domina.
O peso de um objeto, ou seja, sua
propriedade de opor-se sempre no mesmo sentido, uma resistência em nosso movimento,
sem mudança na forma, não é evidentemente uma noção simples. Ela supõe a noção
de resistência e aquela de direção constante e, por conseguinte, ele não pode
ser dado primitivamente: a noção de peso é uma noção adquirida.
A noção de resistência não é tampouco
mais simples, nem imediata, nem primitiva: ela se compõe, com efeito, de uma
sensação de pressão em certo ponto de nosso corpo, sensação acompanhada da
ideia de um corpo exterior que comprime e da ideia de um movimento voluntário
de nosso corpo, cujo movimento é causado por uma pressão crescente. Isso supõe
que se já temos a ideia de um alvo a atingir, de uma distância a percorrer, de
um movimento a fazer, se não podemos, com efeito, querer sem saber aquilo que
nós queremos, nem fazer esforço, no sentido próprio da palavra, sem ter um
objetivo. Além do mais é necessário ter um conhecimento já preciso das direções
para saber se um corpo faz justamente obstáculo a um movimento desejado. Donde resulta
que a noção de resistência é muito complexa e que ela supõem várias outras
noções pois elas mesmas estão muito longe de ser simples e primitivas. Em se
admitindo então que exista uma primeira noção, resultando de nosso primeiro
encontro com as coisas, isto não é seguramente a resistência que é esta primeira
noção.
Nós chegamos ao mais difícil de
nossa tarefa, nas sensações em si mesmas. Como nas sensações, ou seja, de
simples modificações afetivas, como a pressão, a temperatura, a luz, o som, o
sabor e o odor, elas não poderiam ser primitivamente dadas como uma matéria sobre
a qual o espírito trabalha e sobre a qual ele constrói sua representação das
coisas? Importa aqui evitar toda a confusão.
Sem dúvida, é necessário que
alguma coisa aconteça para que o conhecimento se produza. Mas é necessário
também concordar que este acontecimento primitivo não é nulamente constituído
por isto que nós chamamos de sensações, esperando que estas pretendidas
sensações sejam já, em realidade, das percepções e levando à falta de potência
organizadora do espírito. Necessário é, igualmente, admitir-se que o espírito
não pode jamais achar nele mesmo seu contrário, ou seja, o irracional absoluto?
A sensação de pressão, tão
simples, tão obscura, tão primitiva que se possa supor, não é ainda um ponto de
partida, um primeiro termo. Com efeito, é necessário conceber tudo, pelo menos,
que esta pressão é sentida em uma região de nosso corpo antes que numa outra;
em uma palavra, é necessário que esta sensação de pressão seja localizada mais
ou menos vagamente. Porém, se ela é localizada, ela é nem simples nem
primitiva, pois a noção de lugar é inseparável das noções de forma e de
distância: os lugares não podem se determinar senão pelas distâncias relativas.
Também a sensação de cor não existe jamais para nós independentemente de toda a
percepção, ou seja, de toda a localização; a cor nos aparece sempre como
ocupando, num certo lugar, num certo local, que tem certas dimensões e uma certa
forma. Também para todas as sensações, pois os odores são todos, pelo menos, sentidos
no nariz, os sabores na língua e os sons na orelha, de sorte que nenhuma
sensação não nos é jamais dada sem alguma percepção. Em outros termos, nós não
vemos, entre os conhecimentos dos quais se compõem a percepção, nenhum
conhecimento que seja realmente primeiro termo; donde é razoável de se concluir
que provavelmente não existe ponto em todo o primeiro termo. Sem dúvida, é bem
possível, por um artifício principalmente verbal, separar a sensação da
percepção e conceber a pura sensação, simples modificação do objeto pensado,
simples consciência de uma mudança, completamente indeterminada, mas ele é claro
que esta sensação pura é uma abstração, da mesma sem dúvida que este começo que
nós procuramos em nossa percepção das coisas.
Quanto nisto que nós chamamos
nossas sensações, elas trazem já em um alto grau a marca do poder organizador
do espírito. Com efeito, em primeiro lugar toda a sensação, por mais simples que
ela se pareça, encerra realmente uma multiplicidade indefinida. Em um som há
uma multidão de sons simultâneos e sucessivos, em uma superfície colorida, por menor
que seja, há uma multidão de nuances diferentes: nada no mundo é homogêneo.
Então não se pode dizer que de tais sensações sejam os dados cujo espírito se
apodera sem os modificar; o dado seria aqui uma variedade indeterminada, porém o indefinido e indeterminado não podem
ser alcançados como tais, e assim isto
que nós somos tentados a tomar como uma sensação simples e primitiva resulta,
em realidade, da aplicação da unidade na
multiplicidade, ou seja, da própria ação do pensamento.
Além do mais, as qualidades
sensíveis, como disse Platão, são por si mesmas indeterminadas: uma luz é deslumbrante
ou sombria? Um som é ele agudo ou grave? Ele é agudo se o comparo a um som mais
grave, grave se comparado a um som mais agudo; em uma palavra, ele flutua sem
se fixar entre dois extremos: o mais agudo e o mais grave. Por isso, a sensação
dada no espírito seria indeterminada e já que a sensação real é determinada,
isto é, ela é já em parte obra do espírito que, fixando os pontos de comparação
e introduzindo no indefinido a medida e a unidade, é somente capaz de dizer
isto é isto, e isso é isso: na sensação a mais simples estão já envolvidas de
comparações e de afirmações.
Tudo isto que precede ao objeto das
sensações pode também ser deduzido desta proposição indiscutível: nós
aprendemos a sentir. Se tal azul era um dado, nós o percebemos imediatamente tal
como é e sempre da mesma maneira, porém, na realidade, o pintor e o tintureiro
chegam pelo exercício a discernir as nuances do azul que eles confundiam de
início; inversamente, os daltônicos confundem as nuances que a maior parte dos
homens distingue, isto não seria explicável se a cor fosse um dado primitivo, porque seria então crer que o dado
não é o mesmo para o daltônico e para os outros: é melhor concluir que o dado é
o mesmo para todos, mas que cada um não sabe igualmente bem organizá-lo e
interpretá-lo.
Qual é enfim o resultado desta
análise? O que fica na percepção que manifesta a natureza do mundo e não a
nossa? Resta primeiro a multiplicidade indefinida, que é o contrário do
pensamento e a natureza essencial do objeto. Reste em seguida a ordem fixa
desta diversidade, ou seja, a necessidade externa que faz que nossas percepções
não obedeçam nossa vontade, mas nos impõem de intermediárias necessárias e de
caminhos inevitáveis.
Por isso, o objeto dado é
expresso inteiramente por esta fórmula de ordem fixa de uma diversidade
indefinida de sensações possíveis. O problema da percepção deve por isso ser
posto nestes termos: como é possível para um ser perceber em qualquer coisa, o
conhecimento de ordem fixa de uma diversidade indefinida causas de sensações?
(1)
________________________________
(1)
A análise geral
da questão assim pensada já tem sido apresentada por fragmentos aos leitores
desta revista. Nós remetemos o leitor primeiro ao fragmento 16 de Jules Lagneau e em seu comentário
(Revista de Metafísica e Moral, tomo
VI, março e setembro de 1898), e também aos diálogos I e IV de Criton (Revista de Metafísica e Moral, tomo I e
tomo IV). Nós prosseguiremos aqui, de acordo com o mesmo método, a análise das
dificuldades particulares que apresenta o estudo da percepção.
Audru - sartre e a realidade humana
ResponderExcluir- Destaque Pos. 52 a 54 | Data de adição: domingo, 14 de julho de 2013 17h36min46s GMT
As suas pesquisas descobriram-lhe já certas novas orientações, certos pensadores (1 ) C. R. D., Questions de méthode, pág. 59. 11 postos à margem, ou ainda pouco conhecidos. Revela-se como um leitor atento de Alain, conhece bem La Pensée concrète de Spaier, os estudos de Jean Wahl, os Gestalt-teóricos.
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