"Foi uma vez numas carreteadas pela fronteira, no tempo em que não havia trem de ferro, quando as carretas gemiam o dia inteiro pelas estradas reais, sem que ninguém lhes passasse na frente como agora. Um carreteiro muito rico que possuía de seu além de dinheiro e campo, mais de cem juntas de bois invernados, e andando em viajada grande resolveu, à tardinha, no momento mesmo em que o sol se mergulhava numa sangueira de nuvens coloradas, fazer pouso na costa de uma restinga, poucas braças afastadas da estrada. Era lugar de sossego e de bom pasto para a boiada aplastada, que já ia com ganas de largar a carga. Assim foi que o carreteiro enveredou para lá as carretas e com auxílio de piazinho que era o seu único companheiro de viajada, desalojou a boiada, tocando-a para o campo que estava ali mesmo coberto de flechilhas. E feito isto, que era o principal, o carreteiro não perdeu tempo no resto. Antes que escurecesse de um tudo mandou o piá trazer lenha do mato a fim de preparar o fogo para o amargo imprescindível e requentar o feijão com charque e mais o arroz com guisado. Era esse o remate invariável dos que durante o dia por aí andam "peludiando" na ruindade dos caminhos.
Mas ao lado, quase encostado às carretas viu o carreteiro os vestígios do fogão de alguém que ali sesteara ou pousara na véspera. Para se livrar de maior trabalho, enquanto o guri embromeiro não voltava, aproveitou os gravetos e os tições que ainda ardiam entre as cinzas, e, no mesmo lugar, bem em cima do outro, começou o seu fogo que logo vingou em grossas labaredas, junto da carretama. Ao voltar da restinga, o piá deu logo com aquela barbaridade, coisa do diabo que nenhum herege faria! Fogão de carreteiro em cima de outro fogão, é sinal certo de desgraça! Pois o gaúcho pagou caro aquela heresia. Alta noite, já meio chamuscado, despertou aos gritos do piazinho. As labaredas do improvisado fogão cresciam em línguas enormes, começando a lamber de baixo para cima as carretas. Uma e outra ardiam em chamas com toda a carga que conduziam. Ao forte sopro do vento, mais aumentava o fogo, maior era o clarão no escampado perdido na noite. O carreteiro e o guri, correndo que nem veados, iam e vinham da sanga próxima trazendo água e atirando-a no fogaréu. Mas tudo foi inútil: a fogueira crescia crepitante como fogo em bamburral. A sanga já estava quase "cortada" e nada do fogo apagar-se. Mas logo que o arroio secou a fogueira se extinguiu quase como por milagre. Tudo tinha ficado reduzido a cinzas! Tudo, e ainda não era tudo. Pois não é que a boiada tinha se sumido! E nada mais: depois de uma semana de peripécias, ao bater de volta na querência, a primeira notícia fresca que deram ao carreteiro foi de que a sua china se tinha bandeado para outro, levando ainda por cima uma guaiaca de onças e uma tropilha de baios.
E o carreteiro ficou louco.
E desde esse dia nunca mais se fez fogo em lugar que foi fogão de outro.
E quem o fizer terá o mais triste dos fins."
Apud Antologia do Folclore Brasileiro, V II, de Luis da Câmara Cascudo.
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