quarta-feira, 15 de maio de 2013

A Rosa de Paracelso - Por Jorge Luis Borges (1978)



Em sua oficina, que abarcava as duas salas do porão, Paracelso pediu a seu deus: a seu deus indeterminado, que lhe enviasse um discípulo.
Entardecia. O escasso fogo da lareira produzia sombras irregulares. Levantar-se para acender a lamparina de ferro, era trabalho demasiado.

Paracelso, distraído pela fadiga, esqueceu-se de sua súplica. A noite havia apagado os empoeirados alambiques e o atanor, quando bateram à porta... O homem, sonolento, se levantou.
Subiu a pequena escada de caracol e abriu uma folha de suas portas.
Entrou um desconhecido. Também estava muito cansado. Paracelso, lhe indicou um banco. O outro sentou-se e, esperou.
Durante um tempo, não trocaram uma palavra.
O mestre foi o primeiro que falou.
- Recordo caras do ocidente e caras do oriente; disse, não sem certa pompa.
- Não recordo a tua. Quem és o que deseja de mim?
- Meu nome é o de menos – replicou o outro.
- Três dias e três noites tenho caminhado para entrar em tua casa. Quero ser teu discípulo. Trago-te todos os meus haveres.
Sacou um saco largo e estreito e virou sobre a mesa. As moedas eram muitas, e de ouro. Fez isso com a mão direita.
Paracelso lhe havia dado as costas para acender a lâmpada. Quando deu a volta, observou que na mão esquerda, segurava uma rosa. A rosa, o inquietou.
Recostou-se. Juntou as pontas dos dedos e disse:
- Me crês capaz de elaborar a pedra que troca todos os elementos em ouro; e me ofereces ouro. Não é ouro o que busco. E se o ouro de importa, não será nunca meu discípulo.
- O ouro não me importa. Respondeu o outro. Estas moedas não são mais que uma prova de minha vontade de trabalho. Quero que me ensines a arte. Quero percorrer a teu lado o caminho que conduz à pedra.
Paracelso disse, com lentidão:
- O caminho é a pedra. O ponto de partida é a pedra. Se não entendes estas palavras, ainda não começou a entender. Cada passo que darás é a meta.
O outro o mirou com receio. Disse com voz distinta:
- Mas há uma meta?
Paracelso se riu.
- Meus detratores, que não são menos numerosos que estúpidos, dizem que não. E me chamam um impostor. Não lhes dou a razão. Mas não é impossível que seja uma ilusão. Sei que há um caminho.
Houve um silêncio, e disse o outro:
- Estou pronto a percorrê-lo contigo. Ainda que devamos caminhar muitos anos. Deixa-me cruzar o deserto; deixa-me divisar ao menos (siquiera) desde longe a terra prometida, ainda que os astros não me deixem pisá-la. Quero uma prova antes de empreender o caminho.
- Quando? Disse com inquietude Paracelso.
- Agora mesmo; disse com brusca decisão o discípulo.
Haviam começado falando em latim. Agora, em alemão. O rapaz elevou a rosa no ar.
- É bem conhecido, disse, que podes queimar uma rosa e fazê-la ressurgir da cinza por obra de tua arte. Deixa-me ser testemunha desse prodígio. Isso te peço e te darei depois minha vida inteira.
- És muito crédulo, disse o mestre. Não há necessidade de credulidade; exijo a fé.
O outro insistiu.
- Precisamente, porque não sou crédulo, quero ver com meus olhos a aniquilação e a ressurreição da rosa.
Paracelso a havia tomado e ao falar brincava com ela.
- És crédulo, disse; dizes que sou capaz de destruí-la.
- Ninguém é incapaz de destruí-la, disse o discípulo.
- Estás equivocado, crês porventura que algo pode ser devolvido ao nada? Crês que o primeiro adão no paraíso pode haver destruído uma só flor, ou uma folha de erva?
- Não estamos no paraíso, disse teimosamente o rapaz. Aqui, de baixo da lua, tudo é mortal.
Paracelso se havia posto em pé.
- Em que outro lugar estamos? Crês que a Divindade pode criar um lugar que não seja o paraíso? Crês que a tristeza é outra coisa que ignorar que estamos no paraíso?
- Uma rosa pode se queimar, disse com provocação o discípulo.
- Ainda resta fogo na lareira, disse Paracelso. Se arremessar esta rosa às brasas, crerias que foi consumida e que a cinza é verdadeira. Digo-te que a rosa é eterna e que somente sua aparência pode mudar. Bastaria-me uma palavra para que a vejas de novo.
- Uma palavra! , disse com estranheza o discípulo.
- O atanor está apagado e estão cheios de pó os alambiques. Que farias para que ressurgisse?
Paracelso o mirou com tristeza.
- O atanor está apagado, repetiu. E estão cheios de pó os alambiques. Neste trecho de minha longa jornada, uso outros instrumentos.
- Não me atrevo a perguntar quais são; desse o outro com astúcia e com humildade.
- Falo daquilo que usou a Divindade para criar os céus e a terra e o invisível paraíso em que estamos; e que o pecado original nos oculta. Falo da palavra que nos ensina a ciência da cabala.
O discípulo disse com frialdade:
- Te peço a graça de me mostrar a desaparição e a aparição da rosa. Não me importa que operes com alquitaras (aparelho primitivo de destilação) ou com o verbo.
Paracelso refletiu; ao fim disse:
- Se eu o fizesse, dirias que se trata de uma aparência imposta pela magia de teus olhos. O prodígio não te daria a fé que buscas. Deixa pois a rosa.
O jovem o mirou, sempre receoso. O mestre alçou a voz e lhe disse:
- Ademais, quem és tu para entrar na casa de um mestre e exigir-lhe um prodígio? Que tens feito para merecer semelhante dom?
O outro replicou, tremulamente.
- Já sei que não tenho feito nada. Peço-te em nome dos muitos anos que estudei a tua sombra; que me dixes ver a cinza e depois a rosa. Não te pedirei nada mais! Acreditarei no testemunho de meus olhos!
Tomou com brusquidão a rosa encarnada que Paracelso havia deixado sobre a escrivaninha e arremessou nas chamas. A cor se perdeu; só ficou um pouco de cinza. Durante um instante infinito, esperou as palavras e o milagre.
Paracelso não se havia alterado.
Disse com curiosa simplicidade:
- Todos os médicos e todos os boticários de Basiléia afirmam que sou um enganador. Talvez estejam certos... E aí está a cinza que foi a rosa que não o será.
O rapaz sentiu vergonha.
Paracelso era um charlatão ou um mero visionário. E ele, um intruso. Havia franqueado sua porta e o obrigava agora a confessar que suas famosas artes mágicas eram vãs.
Ajoelhou-se e lhe disse:
- Tenho obrado imperdoavelmente. Tem-me faltado a fé que o senhor exige dos crentes. Deixa que continue vendo a cinza. Voltarei quando for mais forte e serei teu discípulo. E no fim do caminho, verei a rosa.
Falava com genuína paixão. Mas essa paixão era a piedade que o inspirava o velho mestre; tão venerado, tão agredido, tão insigne; por tal razão, tão vazio (hueco).
Quem era ele? Johannes Grisebach, para descobrir com mão sacrílega, que de trás da máscara, não havia nada. Deixar-lhe as moedas de ouro, seria uma esmola. Retomou-as ao sair.
Paracelso o acompanhou até o pé da escada e lhe disse: que em casa, sempre seria bem-vindo.
Ambos sabiam que nunca voltariam a ver-se.
Paracelso ficou sozinho.
Antes de apagar a lâmpada e de sentar-se na poltrona surrada, virou o tênue punhado de cinza na mão côncava e disse uma palavra em voz baixa:
- A rosa, ressurgiu!

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