sábado, 9 de fevereiro de 2013

As Nuvens - Aristófanes

Personagens

Estrepsíades, pai de Feidipides

Feidipides, jovem irresponsável

Xântias, escravo

Alunos de Sócrates

Sócrates

Coro das Nuvens

Corifaios ou Chefe do Coro

Aristófanes

Filosofia

Sofisma

Pásias, credor de Estrepsíades

Amínias, credor de Estrepsíades

Cairefonte, discípulo de Sócrates

Escravos, Estudantes, Testemunhas, etc.


Cenário: Uma rua de Atenas. À esquerda, a casa de Estrepsíades, velho
agricultor obrigado pela guerra a deixar o campo e passar a residir em Atenas;
à direita, um casebre diminuto, sujo, arruinado, que obriga o Pensamental de
Sócrates. À extrema esquerda, uma estátua de Poseidon. Em frente da casa
de Sócrates, contrabalançando com herma, há um fogão cheio de panelas,
com um comprido e fino cano de chaminé e um letreiro que diz: MODELO DO
UNIVERSO, SEGUNDO O PRINCÍPIO DA CONVECÇÃO.

Diante da casa de Estrepsíades há duas camas, uma ocupada pelo próprio
Estrepsíades, a outra por Feidipides. Perto, estendidos no chão, dormem e
roncam fortemente vários escravos.

Está quase amanhecendo.

Estrepsíades (mexendo-se agitado, depois atirando para um lado as cobertas
e sentando-se na cama, e bocejando):

Aaaaaaaaaaauuuuuuuuuuu!

Zeus, Todo-Poderoso, que infindável

E monstruosa noite! Quando o dia

Nascerá finalmente? Eu juraria

Há muito tempo ter ouvido o canto

Do galo. E o que se dá com esses escravos?

Roncando ainda assim. Que desaforo!

Pelos deuses! As coisas por aqui

Eram bem diferentes, certamente

Nos velhos tempos, antes dessa guerra!

Maldita guerra! Arruinou Atenas.

Não se pode sequer, de agora em diante,

Chibatear sem dó nossos escravos,

Pois, se o fizermos, os escravos fogem

E vão se apresentar aos espartanos.



(apontando para Feidipides)



O caso é ainda pior, embora incrível,

Com este meu filho, moço irresponsável,

Preguiçoso sem par e incorrigível.

Vede como ele dorme aconchegado

Sob cinco cobertas. Muito bem!

Se é isto que queres, vou dormir também.

Não tem graça: dormindo, e eu acordado.



(Enfia-se de novo debaixo das cobertas por um momento, depois as empurra e
senta-se de novo na cama.)



Não consigo dormir. Malditas dívidas!

Não me deixam sequer piscar os olhos.



(Voltando-se para Feidipides)



Tudo por tua causa, filho ingrato.

Teus malditos cavalos, tuas selas, Arreios, jaezes e chicotes,


E rabos de cavalo, ainda por cima!

Estou falido, arruinado, pobre.

O que vai ser de mim no fim do mês,

Quando todas as dívidas vencerem?



(Acorda Xântias, brutalmente, com pontapés.)



Vai depressa uma lâmpada acender

E o meu livro de contas trazer.



(O escravo se levanta, acende uma lamparina de luz muito fraca e traz o livro
de escrituração.)


Vou ver aqui nas contas quanto devo.



(Lendo em voz alta.)



A Pásias a importância de trezentos...

Isto tudo? Para o que terá sido?

Ah! Agora me lembro! Estou lembrado:

O cavalo capão que eu lhe comprei.

Acho que era melhor me ter capado!



Feidipides (sonhando alto):

Filo! Estás me traindo sem-vergonha!

Corre seguindo bem a tua pista!



Estrepsíades

É isto! Essa mania de cavalos

É o que está arrasando a minha vida.

Pensa que está correndo até no sonho.



Feidipides (sonhando alto):

Quantas voltas ainda para o fim?



Estrepsíades:

Teu pobre pai se encontra mesmo às voltas!



(Voltando ao livro de escrituração):



Agora vamos ver, depois de Pásias

Qual a seguinte dívida contraída.



(Lendo em voz alta):



A Amínias eu devo pela compra

De um carro com timão, rodas e tudo...



Feidipides (sonhando alto):




Tira o cavalo agora da poeira

Palafreneiro, e leva-o para a cocheira.



Estrepsíades

Do Meu lar me tiraste, filho ingrato!

Duas ou três demandas, por tua culpa,

Já perdi. E essas dívidas agora!



Feidipides (acordando, mal-humorado):

Por que motivo, pai, a noite inteira

Te mexeste na cama sem dormires

Nem deixares dormir?



Estrepsíades:

A noite inteira

Me mordeu o maldito de um meirinho.

Ficas sabendo agora.



Feidipides:

E agora queres

Permitir-me dormir bem sossegado?



Estrepsíades:

Dorme, dorme à vontade, seu maroto!

Dorme à vontade, mas fica sabendo:

As dívidas que hoje me atormentam

A ti atormentar irão um dia.



(A única resposta de Feidipides é um ronco)



Morte sofrida e crua bem merece

O vil alcoviteiro que me fez

Unir-me a tua mãe no casamento!

Eu sempre quis viver na paz do campo,

A terra cultivando, sempre às voltas

Com colmeias, ovelhas e oliveiras.

Mas, por azar, com quem fui casar-me?

Com tua mãe, donzela da cidade,

Ela própria sobrinha de Megacles,

Herdeiro e filho do Megacles Velho,

Do fidalgo Megacles. Ela uma moça

Bonequinha de luxo. E nos casamos.

E deitamos na cama. Eu fedendo

A estrume, curral, borra de vinho,

Ela cheirando a todos os perfumes:

E trazendo consigo tanta coisa:

Beijos na boca, luxo e preços altos,

E pratos requintados e outras coisas...

Era, porém, ativa diligente.

Isso lá ela era. O dia inteiro


Fiando a lã em casa trabalhava

E de noite era ainda mais ativa:

Não mais tecia a lã, mas tosquiava.

“O que pensas senhora, que sou?

“Costumava eu dizer-lhe. “Homem ou bode?”



(De repente, a lamparina bruxuleia e se apaga.)



Xântias:

Não tem mais óleo a lâmpada.



Estrepsíades:

Ora essa! E por que a acendeste, desgraçado? Chega aqui, que vais ser
chicoteado.



Xântias

Mas por quê? Mas por quê? O que fiz eu?



Estrepsíades:

Não sabes nem meter. Naturalmente.

O pavio meteste erradamente.



(Investe contra Xântias, que esquiva e corre para dentro da casa).

O que eu ia dizer? Quando nasceu

Este filho querido e dorminhoco,

Tratamos logo, eu e sua mãe,

De um nome lhe arranjar. Ela queria

Um nome bem fidalgo, bem na moda,

Em hipos terminado. Por exemplo:

Xantipos ou Caripos ou Calípedes.

Mas eu queria que se nome fosse

Feidonides, em honra a seu avô

Homem de bem, trabalhador e honrado.

Discutimos, porém enfim chegamos

A um compromisso assim: Feidipides,

Um nome meio a meio construído.

“Eu sei o que vai ser quando for grande”

Costumava dizer a minha esposa,

Olhando a criancinha: “Um grande homem,

Como o Tio Megacles. Grande homem!

Tenho a impressão até de vê-lo agora

À vontade, na Acrópole, trajando

Veste de púrpura”. Mas eu contestava:

“Eu o estou vendo, destro, na montanha,

Pastoreando as cabras e vestindo,

Como seu pai, um sórdido saiote”.

Inútil é dizer que o meu desejo

Não foi cumprido. Fora os cavalos,

Ocupação alguma tem meu filho.

De qualquer modo, após os meus miolos


Queimar a noite inteira, me parece

Ter do problema a solução achado.

Mister, porém, é primeiro encontrar

Um meio de acordá-lo. É isso mesmo!



(Com voz carinhosa, junto ao ouvido de Feidipides):



Feidipides (acordando furioso):

Ora essa, meu pai! O quê, agora?



Estrepsíades

Um beijo para teu pai. E a mão, meu filho.



Feidipides

O que significa tudo isso?



Estrepsíades

Diz-me, filho: gostas de teu pai?



Feidipides

Gosto, sim. Por Poseidon juro mesmo.



Estrepsíades

Isto, não! Isto não, meu filho, não

Jures por esses deuses cavalares.

Jurar por eles, por Poseidon, então,

Causa de toda esta situação

Que ora me aflige! Se porém, meu filho,

Gostas mesmo de mim, peço-te, imploro

Fazer o que desejo. Me prometes?



Feidipides (desconfiado)

Depende. O que desejas, afinal?



Estrepsíades

Escuta o que te peço, sim, meu filho,

Muda de todo o teu comportamento.

Ouve o que digo, e faz de ti mesmo

Um homem novo, um novo Feidipides.



Feidipides

Como, porém?



Estrepsíades

Promete-me, primeiro.



Feidipides (relutante)

Vá lá, prometo. E agora, Dionísio

Que me ajude!




Estrepsíades

Meu filho, estou contente.

Agora vou dizer-te o que é preciso.

Vês aquele casebre, aqui pertinho

Com uma bonita porta?



Feidipides

Não me digas

Que para lá me estás encaminhando!



Estrepsíades (reverente)

Este é o Pensamental, meu caro filho.

Ali vivem homens sábios, professores,

Que irão te ensinar, e mais: provar-te

Que toda a atmosfera é realmente

Um Forno Cósmico, e nós apenas somos

Uns fragmentos de carvão ardendo.

Ainda há mais: mediante pagamento,

Naturalmente, oferecem um curso

Chamado: “O Meio de Vencer Demandas”.

É um meio honesto, enquanto for possível.



Feidipides

E quem são esses homens?



Estrepsíades

Vou dizer-te.

São grandes eruditos. Cientistas.



Feidipides

Muito bem. Mas quem são?



Estrepsíades

Quem são? São... são...



Feidipides

Quem, afinal de contas? Quem são eles?



Estrepsíades

Eles quem são?



Feidipides

Não venhas me dizer

Que são esses pedantes, charlatões

Cairefonte e esse embusteiro Sócrates.



Estrepsíades (escandalizado)

O que é isso, meu filho! Cala a boca.

Não me faças jamais ouvir palavras

Tão pouco respeitosas como essas.


Podes crer: se não queres que teu pai

Morra de fome, acabe miserável,

Farás melhor com eles estudares

E deixares de vez os teus cavalos.



Feidipides

Por Dionísio, isto não! Nunca na vida!

Nem mesmo se, meu pai, me seduzires

Com todos os cavalos de Leogoras!



Estrepsíades

Imploro-te, meu filho! Por favor

Vai estudar nesse Pensamental!



Feidipides

Ouvi dizendo

Que dois tipos de Lógica lá se ensinam.

Uma delas chamada Filosófica

Ou Lógica Mora, outra chamada

De Lógica Sofística ou Socrática.

Muito bem. Se, meu filho, conseguires

Esta Segunda lógica aprender,

Não terei de pagar uma moeda

De todas essas dívidas mofinas

Que só por tua causa contraí.



Feidipides

Mas não contes comigo. Os agiotas,

Os vampiros cruéis me depenaram.

Como iria eu agora face a face

Encontrar-me e com eles discutir?



Estrepsíades

Por Deméter, então, juro e prometo:

Nunca mais comerás em minha mesa.

Pode juntar teus trapos e ir embora.



Feidipides

Tio Megacles não vai me deixar

Sem montaria, não, por muito tempo.

Não preciso de ti. Vou procurá-lo.

(sai Feidipides)



Estrepsíades

Perdi, confesso, mas por pouco tempo.

Primeiro, ergo uma prece para os deuses,

E irei matricular-me, após, eu mesmo

Nesse Pensamental... Mas, na verdade,

A memória está fraca em minha idade

E o raciocínio não é mais brilhante.


Terei paciência e ânimo bastante

Pra ingerir essa lógica abstrusa?

Mas tenho que fazer. Por que então

Ficar assim pensando o dia inteiro,

Sem bater nesta porta?

(caminha até a casa de Sócrates e da um pontapé na porta)

Ei, porteiro!



Estudante (de dentro)

Que barulho!

(abrindo a porta):

Quem bate nesta porta?



Estrepsíades

Eu mesmo, meu amigo, Estrepsíades,

Filho de Feidon, em Quinquina nascido.



Estudante

Pela maneira com que aqui chegaste

E deste coices nesta pobre porta,

Merecias chamar-te Estupidez.

Não vês que provocaste o mau sucesso

De grande descoberta científica?



Estrepsíades (humildemente)

Oh! Por favor, desculpa. Eu não sabia.

Sou um homem do campo, sem traquejo.

Que descoberta, diz-me, abortou?



Estudante

Isto é um segredo secretíssimo,

Apenas conhecido dos alunos.



Estrepsíades

Não podes me dizer, então. É certo.

Por isso mesmo aqui me apresento

Para estudar neste Pensamental.



Estudante

Muito bem, neste caso, então, te digo.

Não te esqueças, porém, que o nosso estudo

Do mais denso mistério é rodeado.

(em voz baixa)

Escuta aqui: agora mesmo Sócrates

Argüía o solerte Cairefonte,

Para saber, perfeita e exatamente,

O número de pés (de pés de pulga)

Que uma pulga é capaz de completar

De um pulo tão somente. Com efeito

Uma pulga picara Cairefonte


Na sobrancelha, e, rápida, saltara

Para a calva socrática imponente.



Estrepsíades

E como foi que ele mediu tal coisa?



Estudante

Foi verdadeiramente genial.

Primeiro derreteu alguma cera,

Depois tratou de aprisionar a mosca

E as patinhas meteu na cera mole,

Que deixou esfriar. Um sapatinho

Assim formou então. Logo em seguida,

Descalçou os sapatos, e a medida

Foi feita sem tropeços, num instantinho.



Estrepsíades

Que inteligência, Zeus onipotente!



Estudante

Genial realmente. Mas ainda

Ouviste nada. Queres outro exemplo?



Estrepsíades

Com muito gosto. Fala, por favor.



Estudante

Cairefonte a Sócrates pergunta

Das duas qual a certa teoria:

O mosquito, ao zumbir, se utiliza

Da boca ou justamente do contrário?



Estrepsíades (vivamente interessado)

Continue a explicar, por obséquio.



Estudante

O trato intestinal do vil mosquito

É diminuto, explica o grande sábio.

E o gás que vem do estômago, encontrando

Tão pouco espaço, passa sibilando

E o zumbido produz que nós ouvimos.



Estrepsíades

Quer dizer que o mosquito, quem diria!

Tem, então, um trompa no traseiro!

Que grande homem! Que sabedoria!

Quem entende a tal ponto do traseiro

Há de entender também do mundo inteiro!




Estudante

E sabe de uma coisa: inda outro dia

Por causa de um lagarto, ele deixou

De fazer uma grande descoberta.



Estrepsíades

Um lagarto o impediu? Essa é incrível!



Estudante

Aconteceu à noite, quando o sábio

A órbita da Lua pesquisava.

Olhava, boquiaberto para o céu,

Quando eis que despencando do telhado

Um lagarto caiu em cima dele.



Estrepsíades

Um vil lagarto, petulante, em cima

Do vosso grande Sócrates! É boa!



Estudante

E ontem, durante a noite não havia

Nada que se comesse nessa escola.



Estrepsíades

Como ele prepara a vossa ceia?



Estudante

Com muito amor. Uma combinação

De ciência e prestidigitação.

Pôs na mesa, primeiro, uma camada

De cinza feita de pó, pulverizada.

Depois muito à vontade, muito ancho,

Com uma haste de ferro fez um gancho.

E traça um arco ao longo do perímetro.

Com esse movimento circular

O extremo do gancho em seu caminho

Encontra o manto que está mais vizinho,

E o manto manda então ele empenhar.

O que for apurado é pra o jantar.



Estrepsíades

Que talento! Que gênio! O próprio Tales

Era um amador com ele comparado!

Abra-me a porta do Pensamental!

Quero ver esse sábio frente a frente,

Quero estudar com ele! Ser letrado!



(o equiclema é girado então para mostrar o interior do Pensamental de
Sócrates. Bem alto, o guindaste sustenta Sócrates dentro de um cesto, muito
agitado, observando o céu. Pendurados nas paredes do Pensamental há vários


mapas, instrumento, etc. No centro do pátio, encontra-se um certo número de
alunos, lívidos, magérrimos, profundamente empenhados em uma atenta
contemplação do solo)

Por Hércules! O que é isso? O que estou vendo?



Estudante

O que há de estranho nisso? O que achas?



Estrepsíades

Que eles são prisioneiros espartanos.

Vindos de Pilos. Assim me parece.

Mas por que para o chão estão olhando?



Estudante

Importante pesquisa estão fazendo,

Pesquisa geológica; estudando

As camadas da terra, procurando...



Estrepsíades

É claro. Já entendi. Procuram trufas.

Eu conheço um terreno onde há fartura

De trufas.

(apontando para outros alunos, que estão completamente curvados.)

Mas aqueles lá, curvados

Quase que até o chão, o que eles fazem?



Estudante

São alunos de escol. Pesquisam o Hades.



Estrepsíades

Mas... e os traseiros para o céu voltados?



Estudante

Da astronomia são principiantes.

(para os alunos)

Depressa, para dentro, antes que o Mestre

Vos apanhe. Portanto, entrai, entrai!



Estrepsíades

Não, espera! Permite que eles fiquem

Por um momento mais. Quero falar-lhes.



Estudante

É de todo impossível. O estatuto

Não permite jamais que fiquem expostos

Ao ar livre. É a regra, e regra é regra.



(os alunos desaparecem em uma porta no fundo. Enquanto isso, Estrepsíades
contempla os vários mapas e instrumentos pendurados nas paredes).




Estrepsíades (apontando para um mapa)

Para o que serve isto?



Estudante

Astronomia



Estrepsíades (mostrando outros instrumentos)

Estes para o que servem?



Estudante

Geometria



Estrepsíades

E para que serve, então, a geometria?



Estudante

Para medir, naturalmente.



Estrepsíades

Lotes?



Estudante

O mundo inteiro.



Estrepsíades

Que grande instrumento!

Útil e patriótico, sem dúvida.



Estudante (apontando para um mapa)

Aquele mapa abarca o mundo inteiro.

Aqui está Atenas.



Estrepsíades

Que absurdo!

Como pode isso ali ser mesmo Atenas?

Se não vejo sequer um tribunal?



Estudante

Pois é pura verdade. Isso é Atenas.



Estrepsíades

E onde estão meus vizinhos de Quiquina?



Estudante

Aqui estão. E aqui está Eubóia.



Estrepsíades

Eu conheço essa ilha. O nosso Péricles

A espremeu até deixá-la seca.

Mas onde está Esparta, que não vejo?




Estudante

Aqui está Esparta.



Estrepsíades

Assim tão perto?

Na minha opinião, seria certo

Afastá-la bem mais.



Estudante

Não é possível.



Estrepsíades

É uma pena, não é? Mas que fazer



(Pela primeira vez, Estrepsíades vê Sócrates dentro do cesto, lá no alto.)



O que está pendurado ali no cesto?



Estudante

Ele próprio em pessoa.



Estrepsíades

Ele próprio?

Quem é esse Ele próprio?



Estudante

O próprio Sócrates.



Estrepsíades

Ele?! O sábio filósofo e erudito?

Faze-o descer, então! Dá logo um grito

O chamando para cá! Eu quero vê-lo!



Estudante (afastando-se apreensivo, apressadamente)

Podes chamá-lo, então. Chama tu mesmo

Que eu tenho muita coisa que fazer.



(sai Estudante)



Estrepsíades

Estás em ouvindo Sócrates? Ô Sócrates!



(nenhuma resposta vinda do cesto)



Quero falar contigo, grande Sócrates!



Sócrates (de uma grande altura filosófica)

Homem vulgar, de mim o que desejas?




Estrepsíades

O que estás fazendo aí trepado?



Sócrates

Eu caminho no ar, e olho o Sol

De cima para baixo. Não estás vendo?



Estrepsíades

Suponho, realmente, que é melhor

Tu zombares dos deuses lá em cima,

Trepado nesse cesto, do que estares

Aqui embaixo, neste duro chão.



Sócrates

Esta também é minha opinião.

Suspenso, como estou, no ar etéreo,

Com ele misturando facilmente

Meu douto pensamento, de Natura

Posso explorar o íntimo mistério,

Mais perto assim do fabuloso Empíreo.

Se aí, no baixo solo, as pesquisas

Da alta ciência eu prosseguir tentasse,

Em vão seria, eu tentaria em vão:

Do nosso pensamento a terra suga

A essência sutil e deixa a grossa.

(como que refletindo)

É o mesmo que acontece com o agrião.



Estrepsíades (extasiado de admiração)

Que sábio raciocínio! Que talento!

A essência sutil... O agrião...

Ó Sócrates divino, eu te imploro:

Desce do cesto, vem aqui para baixo

E me ensina o que a saber aspiro.



(Sócrates é baixado até o chão, vagarosamente)



Sócrates

O que queres saber?



Estrepsíades

Eu quero, Mestre,

Teu curso de oratória e de eloqüência

Seguir, pra discutir com meus credores.

Em verdade os credores se tornaram

Absolutamente insuportáveis.

Importunam, perseguem. Uns miseráveis!

O pior é que estão me ameaçando

De tomar os meus bens. E pouco falta

Que de fato o consigam.




Sócrates

Como foi

Que chegaste a esse estado de insolvência?



Estrepsíades

Fui atacado pela peste eqüina:

Os cavalos comeram o que restava.

É por isso que estou aqui em busca

De ensinamentos que de certo constam

Da tua Lógica Socrática ou Sofística.

Tu podes me ensinar: os argumentos

Que a gente pode usar para livrar-se

De toda e qualquer dívida que temos,

Mas sem termos, é claro, de pagá-la.

Pela lição eu pago o que pedires.

Pelos deuses te juro.



Sócrates

Pelos deuses?

Esses deuses não passam, meu amigo,

De uma falsa e vulgar superstição.



Estrepsíades

Pelo que queres, pois, que eu jure então?

Barras de ferro, como os bizantinos?



Sócrates

Ouvem, meu velho, queres realmente

A verdade saber, toda, inteirinha,

A respeito dos deuses?



Estrepsíades

Quero, sim.

Por Zeus, quero saber toda a verdade.



Sócrates

E queres ser também admitido

Com toda a regalia, no convívio

DE Suas Sereníssimas Altezas,

As Nuvens, nossas deusas?



Estrepsíades

Eu conviver

Com deuses de verdade? Quero muito.



Sócrates

Pois muito bem, então. Primeiramente

Tens de sentar na mística cadeira.




Estrepsíades

Estou sentado.



Sócrates

Agora, na cabeça

A guirlanda votiva coloquemos.



Estrepsíades

A guirlanda votiva? Oh, não! Piedade

Por favor, por favor, não me assassines

Como o desventurado Átamas, na peça

De Sófocles.



Sócrates

Mas Átamas salvou-se.

Confundiste, sem dúvida, com Frixos.



Estrepsíades

Quer seja um ou outro, pouco importa.

O que me importa é não morrer tão cedo.



Sócrates

Coragem, velho. É um processo normal

Exigido de todo o iniciado.



Estrepsíades

Já que não é pra matar, concordo.



Sócrates (aspergindo Estrepsíades da cabeça aos pés com a farinha ritual)

Renascerás, senhor, como perfeita

Flor da oratória, como um consumado

Tratante, palavroso e descarado.



Estrepsíades

Que brincadeira é essa? Estou virando

Um saco de farinha! Estás brincando?



Sócrates

Psiu! Silêncio! Escuta a minha prece.

(levanta os braços para o céu e reza)

Ó Senhor Deus, Imensurável Éter,

Que o mundo envolves, Transparente Ozona!

E vós, e vós, tempestuosas Nuvens,

Nuvens Sagradas, Grandes Majestades,

Revelai-vos aos olhos deslumbrados

Deste humilde sofista, vosso servo.



Estrepsíades

Não, por enquanto, não, Senhoras Nuvens!

Chuva em cima de mim, não, por enquanto.


Vou proteger o corpo com cuidado,

Pois, do contrário, vou ficar molhado.



(Protege a cabeça com a túnica)



Sócrates

Vinde, manifestai-vos, majestosas

Nuvens! Vinde mostrar-me as vossas formas.

Sejam as fontes do Olimpo a vossa origem,

Ou seja a água do profundo Nilo,

Ou do Lago Maiotis ou a neve

Derretida do Monte Mimas, Nuvens,

Descei, Nuvens, ouvi as nossas preces!



(Ouve-se o canto das Nuvens, vindo de muito longe. À medida que elas se
aproximam de Atenas, o volume do canto vai aumentando, até que ele se torne
muito alto.)



Coro

Alto voai, Nuvens eternas!

Trazendo a chuva

E o arco-íris!

Subi do oceano

Até os montes,

Subi dos rios,

Subi das fontes.

Voai bem alto,

Enquanto embaixo

Cobre-se a terra

De seus trigais,

E ruge o mar.

Voai bem alto

O Éter eterno

Fulgura em luz.

Que desça a chuva

Que vós gerais,

Nuvens benditas!



(Ouve-se o forte ronco do trovão.)



Sócrates

Nuvens abençoadas, como é clara

A resposta que dais ao meu apelo.



(A Estrepsíades)



Ouviste o ronco do trovão?




Estrepsíades

É claro!

Confesso que fiquei tão assustado

Que vou ter de aderir à trovoada.



(Solta gases, ruidosamente.)



Se um sacrilégio cometi, desculpa.

Fiz muita força, mas não resisti.



Sócrates

Silêncio, porco! Deixa esses recursos

Para os nossos autores de comédias.



(Ouve-se um ronco de trovão mais baixo.)



Psiu! Silêncio! O séquito das deusas

Sua cantiga entoará agora.



Coro

Virgens da chuva, olhai, virgens da chuva,

Como a terra de Palas resplandece,

Essa terra de Cécrops, bendita,

Que a sombra de oliveiras abençoa.

Pátria de heróis famosos, santuário

De mistérios famosos, cujos ritos

Irrevelados santificam a alma.

Terra que os deuses abençoam e amam

E são festivamente cultuados.

E sempre que começa a primavera,

Dionísio lhe traz sua alegria,

A alegria da música e da dança,

A alegria das Musas e das flautas.



Estrepsíades

Por Zeus, dize-me, Sócrates, quem são

Essas damas que entoam a melodia

Desse hino solene? Elas serão

Acaso deusas da mitologia?



Sócrates

Não são, não. São as nuvens, que são deusas

Dos homens de valor filosofal.

Elas nos asseguram o repertório

Do talento verbal e da eloqüência,

Da graça, do arranzel, do casuísmo,

Da prova em profusão, do circunlóquio...




Estrepsíades (de súbito arrebatado por nevoenta inspiração)

Deve ser então que por isso me sinto

Como que carregado para o alto,

Flutuando no ar de tão inflado

Com todo o sopro da filosofia,

Envolto numa espécie de lanugem,

Verbal tatuagem que me faz sentir

A sensação de uma inchação etérea.

Como se eu fosse um saco de palavras,

Repleto de argumentos e razões,

Cada qual mais aéreo. Enfim, ó Mestre,

O que posso dizer-te é que eu queria,

Queria muito, ver, pessoalmente,

E sem muita demora essas senhoras.



Sócrates

Olha, então, para Parnes. Posso vê-las

Ali descendo, muito docemente.



Estrepsíades

Onde?



Sócrates

Não vês? Ali naqueles vales

Se espalham pelos campos, pelos bosques.



Estrepsíades (esfregando os olhos)

O que está errado? Nada vejo.



Sócrates

Olha fora do palco.



Estrepsíades

Agora vejo!



Sócrates

Terias catarata se não visses.



(Lenta e vagarosamente, o Coro das Nuvens marcha em fila e toma posição na
orquestra.)



Estrepsíades

Fidalgas damas! Todo o espaço ocupam.



Sócrates

E nunca te ocorreu, dize a verdade,

Que são as Nuvens deusas celestiais?



Sócrates

Por Zeus, que, para mim, é novidade.


Sempre pensei que fossem vapor d’água.



Sócrates

Ignoras també, pois, certamente,

Serem elas as boas protetoras

De variadas classes de pessoas:

Profetas, quiropráticos, mocinhos

Cabeludos, poetas ditirâmbicos,

Astrólogos, charlatões e impostores

E muitos outros mais. E como todos

Sem exceção, caminham com a cabeça

Entre as nuvens, e buscam inspiração

Na Musa nevoenta e tenebrosa,

Deles as Nuvens cuidam, e os alimentam.



Estrepsíades

Eis explicado, então, porque escrevem:

“Gotículas que caís do céu molhado”,

“Furacões que coroais de Tifo a testa”,

“Humo esponjoso e hialino” e mais

“Nuvens altas do céu, aves do vento”

“Vinde até nós, rodopiantes cúmulos,

Brancas condensações, vinde até nós!”

E é em troca, então, que esses poetas

Podem comer seu trigo?



Sócrates

E por que não?



Estrepsíades

O que quer saber, porém, é isto:

Se essas damas são Nuvens realmente,

Por que sua aparência é de mulheres?

Pois as nuvens reais não são mulheres.



Sócrates

Que te parecem então?



Estrepsíades

Não sei bem certo.

Têm algo diferente das mulheres.

Ah! Já sei o que é: não tem narizes.



Sócrates

Posso fazer-te uma pergunta ou duas?



Estrepsíades

É claro, é claro! Estou às suas ordens.




Sócrates

Nunca viste uma nuvem semelhante

A um centauro, um touro, um leopardo?



Estrepsíades

Realmente já vi. E o que tem isso?



Sócrates

Temos de deduzir que as nuvens podem

Assumir qualquer forma que desejem.

Vamos supor, então, que elas encontrem

Um homem bestial, lascivo, hirsuto,

Por exemplo: Jerônimo. De pronto

Elas assumem a forma de um centauro,

Da luxúria da tal caricatura.



Estrepsíades

Muito bem. E o que fazem se encontrarem

Simon, esse gatuno do Tesouro

De Atenas?



Sócrates

Sem demora se transformam

Na aparência de um lobo rapinante.



Estrepsíades

Eu compreendo. E ontem, com certeza,

Elas tomaram a forma de um veado

Por Cleomino, o poltrão, terem encontrado.



Sócrates

Precisamente. E, quando acontecer

Um encontro com Cleistenes, se apressam

A assumirem a forma de mulher.



Estrepsíades

Bem-vindas, sede, pois, deusas do céu!

Soberanas da altura, eu vos bendigo.

Se a palavra a um mortal já dirigistes,

Eu vos peço um favor: falai comigo!



(Forte trovão. Estrepsíades encolhe-se, apavorado.)



Corifaio

Salve, ó tu, superidoso homem,

Cão amestrado da cultura, salve!



(A Sócrates)




E salve tu, ó sumo sacerdote

Da conversa fiada. O que desejas

Dize, sem hesitares, pois bem sabes:

De todos os polímates da terra

És tu o mais querido, o preferido,

Juntamente com Pródicos. A este

Preferimos por causa do saber,

De sua erudição. A ti por causa

Da arrogância que mostras, orgulhoso,

Quando andas descalço pelas ruas.



Estrepsíades

Que voz solene, santa e respeitável!



Sócrates

Não existem outros deuses, senão estes.

Todos os mais são meras invenções.



Estrepsíades

Queres dizer que Zeus é uma invençÃo?



Sócrates

Zeus? Que Zeus? Não há Zeus. Que Zeus?



Estrepsíades

Que Zeus?

Quem então faz a chuva? Me responde.



Sócrates

Quem faz a chuva? As nuvens, certamente.

A prova, neste caso, é conclusiva:

Tu já viste jamais chover com céu sem nuvens?

Se fosse Zeus, fazer chover podia

Com um céu todo claro. Ou não podia?



Estrepsíades

Podia, é claro. Tens razão, portanto.

Tens razão, tens razão, mas eu pensava

Que Zeus, com um regador, fazia a chuva.

Mas ainda há uma coisa: e a trovoada?



Sócrates

São as nuvens também. Simples processo

De convecção. Isto é coisa provada.



Estrepsíades

Eu muito te admiro, mas confesso:

Não é fácil seguir teu raciocínio.




Sócrates

Escuta, pois. As nuvens o que são?

Uma densa de água solução.

A tumescência move-se e provoca

Em conseqüência a precipitação.

E conseqüentemente com algum

Esforço então as massas se distendem,

E as massas distendidas fazem: Pum!



Estrepsíades

Mas quem as faz mover para colidirem?

Não achas que é Zeus?



Sócrates

Não, idiota.

Tudo isso é explicado no princípio

Da convecção.



Estrepsíades

Convecção? Princípio?

Espera um pouco. Tu não me disseste

Afinal quem faz a trovoada.



Sócrates

Ora, não te expliquei? Não me entendeste;

As Nuvens são de água carregada

E explodem, quando entram em colisão.



Estrepsíades

E a prova disso, podes me mostrar?



Sócrates

Muito fácil. Em ti mesmo tens a prova.

Os cozidos de carne não conheces

Que são vendidos em Panatenaia?

Como provocam dores de barriga

E fazem ribombar o baixo ventre?



Estrepsíades

Por Apolo, eu me lembro. Coisa Horrível!

Logo a gente se sente muito mal,

Com a barriga crescida e após, então

Dor de barriga e, após, sob pressão,

Vai comprimindo o vento intestinal

E para fora sai como um trovão.

É um ronco a princípio: puuum

Depois mais alto: puuuuum

E afinal um trovão: PUUUUUUUUUUUUM!




Sócrates

Precisamente. O diminuto pum

De tua entranha, é mister, compara

Com o estrondoso pum que vem do céu,

Isto é, o trovão. Mas o princípio

É o mesmo, quer num caso, quer no outro.



Estrepsíades

Mas, então, de onde é que o raio vem?

E, quando o raio cai, por que é que mata

Alguns homens e outros são poupados?

É Zeus quem manda os raios. Evidente!

Com o raio castiga os mentirosos.



Sócrates

Ouve, idiota, e me responde agora:

Se é Zeus que castiga os mentirosos,

Como é que Simon ainda está vivo,

Vivos também Cleôminos e Téoros?

No entanto, em lugar de fazer isso

Ele destrói seus próprios santuários

Corta ao meio carvalhos centenários.

Tem razão para isso? Por acaso

Pode o carvalho cometer perjúrio?



Estreopsíades

Mas como explicas, afinal, o raio?



Sócrates

Espera.



(Ilustra as suas palavras com o fogão Modelo do Universo.)



Vê agora. Suponhamos

A corrente de ar, bem aquecida

Subindo rumo ao céu. Logo em seguida

Atinge as nuvens e estas se dilatam

E se distendem, qual uma bexiga

De boi, bem limpa, que um menino sopra

E se enche de ar. Eis que a pressão

Tremendamente forte se tornando

Provoca a ruptura do balão,

Com um estrondo terrível, o trovão.

E liberando os ventos que disparam

Em tal velocidade que o atrito

Acaba provocando a combustão,

E assim ocorre o raio. Tenho dito.




Estrepsíades

A mesma coisa que me aconteceu

No festival de Zeus! Uma salsicha

Eu estava fritando, e me esqueci

De abrir a casca, e ela arrebentou

Me emporcalhando a cara com a tripa.



Coro

Com que avidez ele o saber procura!



(A Estrepsíades.)



Se puderes passar na nossa prova,

Hás de ser invejado em toda a Grécia.

Antes, porém de começar a prova,

As nossas condições terás de ouvir.

Tua memória é boa? És bem capaz

De pesquisar a fundo o que é preciso?

Ao cansaço, à fadiga és resistente?

A friagem do inverno não te assusta?

Ficarás sem comer um dia inteiro?

Evitarás os vinho e as mulheres?

E enfim, tens de jurar, solenemente,

Seguir, bem a rigor, o nosso código.

Lutar, brigar, pleitear e batalhar,

Como um leal soldado da Palavra,

Sempre como um filósofo perfeito.



Estrepsíades

Se o que quereis, senhoras, se resume

Em insônia, trabalho, resistência

E uma barriga que digere tudo,

Estou às vossas ordens.



Sócrates

Desse modo,

Promete agora, então, que o meu caminho

Hás de trilhar religiosamente,

Sem teres outro deus, senão os meus,

E respeutando sempre esta Trindade:

NUVENS e CAOS e MISTIFICAÇÃO.



Estrepsíades

Se encontrar outro deus, eu o degolo.

Juro que só aqui irei agora

Sacrificar e orar por toda a vida.



Corifaios

Podes então dizer-nos sem temor

O que desejas. Hás de ter, é certo,


Desde que saibas venerar e honrar

As Santas Nuvens, e seguir à risca

O caminho da Vida Filosófica.



Estrepsíades

Eu vos direi, senhoras. É modesta

Minha ambição. Desejo simplesmente

Que toda a minha língua seja a mais matreira

De toda a Grécia.



Corifaios

Pretensão aceita.

Nenhum legislador, de agora em diante,

Te alcançará na produção de leis.



Estrepsíades

Por lei não me interesso. Quero apenas

Dos credores livrar-me para sempre.



Corifaios

Modesto é o teu desejo. Concedido.

E agora, Candidato, confiante

Às nossas mãos entrega-te. Sê forte.



Estrepsíades

Estou inteiramente convencido.

Aliás, não havia alternativa.

Graças a meu filhinho e a minha esposa.

Assim, entrego meu corpo

Para o melhor e o pior,

Podeis matá-lo de fome,

Podeis secá-lo de sede.



Podeis reduzi-lo a gelo

E até picá-lo em pedaços.

Fazei o que bem quiserdes,

Mas eis minhas condições:



Quando, completada a ordália,

Tudo estiver terminado,

Que surja um Estrepsíades

Inteiramente mudado.



Um velhaco, mentiroso,

Solerte e parlapatão,

Embusteiro, palavroso,

Sem vergonha, charlatão



Macio, esperto, untuoso,

Embrulhador consumado,


Pulha, safado, maldoso,

Salafrário e descarado.



Agora, damas, serenas

Podeis me experimentar

Heis de ver que vale a pena,

Não irei decepcionar.



Corifaios

Eis um audaz e corajoso espírito!

Senhor, ao terminares o teu curso,

A glória até o céu te erguerá.



Estrepsíades

Não podes ser mais um pouquinho explícito?



Corifaios

Passarás todo o resto da existência

No ar, em meio a nós, com a cabeça

Enterrada nas Nuvens. Tua vida

Fará inveja a toda a humanidade.



Estrepsíades

E quando alcançarei tanta ventura?



Corifaios

Dentre em pouco, milhares de clientes

À tua porta irão bater, pedindo,

Mendigando, implorando os teus serviços

E os teus conselhos, para defendê-los

Em pleitos judiciais, que muitas vezes

Correspondem a quantias colossais.

Agora, Sócrates, verifica, presto,

Seus poderes, concretos e mentais.



Sócrates

Muito bem. Vamos lá. Dize-me agora

Alguma coisa sobre a tua vida.

É necessária certa informação

Para saber qual será a estratégia

Que contra ti convém utilizar.



Estrepsíades

Estratégia? Me tomas, por acaso,

Por um objetivo militar?



Sócrates

Não, não é isso. Apenas eu pretendo

Fazer-te umas perguntas. Em primeiro

Lugar, responde: Tens boa memória?




Estrepsíades

Isso depende. Se alguém me deve,

Eu não me esqueço, de maneira alguma.

Se eu devo a alguém, contudo, o caso é outro:

Não consigo lembrar, por mais que queira.



Sócrates.

Terás, para falar, algum talento?



Estrepsíades

Pra falar, não; mas para lesar, não falta.



Sócrates

Mas será que não podes aprender?



Estrepsíades

Não te preocupes, que eu darei um jeito.



Sócrates

Mas supões que eu te atire, como um doce,

Um fragmento da sabedoria

Superior. Serás capaz, acaso,

De apanhá-lo no ar?



Estrepsíades

Estás pensando

Que sou um cão de caça, que pegar

Pode a sabedoria em pleno ar?



Sócrates

Cão não digo que sejas, todavia

Burro talvez tu sejas. Mas passemos

A outro ponto do interrogatório.

Se te espancassem, dize: o que farias?



Estrepsíades

Que havia de fazer? Agüentaria,

Mas logo após, contra a agressão sofrida,

À justiça comum recorreria.



Sócrates

Está bem, está bem. Despe-te agora.



Estrepsíades

Despir-me? Para quê? Fiz algo errado?



Sócrates

Nós exigimos dos iniciantes

Que fiquem nus.




Estrepsíades

Eu juro, Sócrates,

Que não sou um ladrão. Se tu quiseres

Podes me revistar.



Sócrates

Por quem me tomas?

Por um policial? Fica sabendo

Que estás submetido à filosófica

Solene iniciação. Acho melhor

Parares de falar tanta tolice

E te despires, da cabeça aos pés.



Estrepsíades (começando a despir-se com extrema relutância)

Está bem... Não, primeiro me responda

Se eu muito me estudar e me esforçar

Com qual de teus alunos eu irei

Parecer?



Sócrates

Sendo assim, com Cairefonte.



Estrepsíades

Com Cairefonte? Um defunto ambulante!

Vou estudar, então, necrologia?



(Febrilmente, torna a vestir o manto.)



Sócrates

Cala a boca, cretino e fica nu!



(Arranca o manto de Estrepsíades e o empurra rudemente para uma abertura
escura, parecendo uma gruta, atrás do Pensamental.)



Avança, candidato!



Estrepsíades

Não, espera!

Estou apavorado! Isso parece

Um covil de serpentes. Dá-me, Sócrates,

De um bolo de mel só um pedaço,

Que eu possa atirar para as serpentes,

Pois, do contrário, elas me comem vivo.



Sócrates

Para a frente, cretino! A hesitação

Não é mais permitida nesta fase

Adiantada da iniciação!




(Sócrates empurra Estrepsíades diante de si na abertura atrás do
Pensamental, depois avança, tira o manto do outro, sorri, depois arranca
também a túnica e desaparece no Pensamental.)



Coro

Adeus, homem valente! Que o futuro

Te seja tão brilhante quanto agora

É a tua coragem! Que a fortuna

Sorria a ti, que já na idade amarga,

No sombrio crepúsculo dos anos,

Investes, forte, impávido, sereno

Rumo à fronteira extrema, derradeira

Da mente humana. Intrépido pioneiro!



(O Coro vira-se bruscamente e olha para os espectadores. Vindo dos
bastidores, aparece o poeta, o calvo Aristófanes, que dá alguns passos para a
frente, e se dirige diretamente ao público.)



Aristófanes

Senhores, venho em nome de Dionísio,

A quem devo de todo a inspiração

Como poeta, e vos expor pretendo,

Com franqueza e completa liberdade,

As minhas queixas íntimas, pessoais,

Permitidas, sem dúvida, ao poeta.

As minhas ambições são muito claras:

Quero o Primeiro Prêmio conquistar

E conquistar também, em conseqüência,

Fama de talentoso e de engraçado.

Assim, e firmemente convencido

Que somente por homens de bom gosto

O respeitável público é formado,

Esta comédia, “As Nuvens”, até hoje

Foi a melhor de todas que escrevi.

Apresentei uma versão primeira,

De vossa aprovação esperançoso.

Muito labor e esforço me custara.

Fui obrigado, entanto, a retirá-la

Vencido, como fui, por meus rivais,

Rivais vulgares, fracos e mesquinhos.

Nem preciso dizer que as minhas queixas

São destinadas aos pretensos críticos

Que a esta revista me induziram.

Aos homens de bom gosto, no entanto,

Quero dizer, para ficar bem claro:

Vosso amigo fiel sou, serei sempre.

Jamais de vós pretendo me afastar

Ou de maneira alguma censurar-vos.

E é natural. Jamais esquecerei

O glorioso dia em que os juízes,


Homens notáveis, de apurado gosto,

O cobiçado prêmio concederam

À comédia “Os Convivas”, que escrevi

Quando era bem jovem. Nesse tempo

A minha Musa ainda era mocinha,

Terna donzela, que não poderia

Um filho dar à luz, sem provocar

Um grande falatório. Fui forçado

A expor o nosso filho, e um estranho

Prontamente adotou o enjeitado.

E fostes vós, senhores, o adotante,

O vosso generoso acolhimento

Alimentou meu filho, e desde então

De duvidar de vosso fino gosto,

É natural, jamais tive razão.

E agora, como Electra na tragédia,

Uma comédia irmã se apresenta

E espera ter a mesma aceitação.

Deixai-a, em suma, vislumbrar somente

Dos cabelos do irmão um simples cacho,

E há de também se conhecer melhor

E vossa aprovação posso esperar.

Não lhe falta beleza. Observai

Sua modéstia natural, as vestes

Tão recatadas, e também notai

Que consigo não traz o instrumento

De couro que provoca gargalhadas.

Notai quanto ela e fina e requintada,

E se abstém de apresentar graçolas

Repetidas, zombando dos carecas;

Quanto recato há em suas danças.

Notai a ausência de pancadarias,

De tombos, tropeções e correrias.

Não heis de ver aqui um pobre velho

Com um bastão espancando os oponentes,

Numa vã tentativa de esconder

A indigência dos versos da comédia.

Esta minha comédia não vereis

Encher o palco de inflamadas tochas

Ou de panos manchados de sangue.

Ela a vós se apresenta tão somente

Confiante em si mesma e na poesia.

É isso que ela é. E quanto a mim

Sou seu pai amoroso. Posso ser

Careca, como os meus rivais não cansam

De dizer, porém não desenxabido.

Jamais, de fato, me servi da arte

De vos servir comida requentada.

As minhas ficções são sempre novas

E jamais se parecem uma com a outra.


Lembrar-vos posso ainda que fui eu

Que derrubei Cleon com um forte murro,

Ferindo o seu orgulho. No entanto,

Não o pisei depois que ele caiu.

Por outro lado, vede os meus rivais

Com o infeliz Hipérbolo o que fizeram:

Não se cansaram de pisá-lo e assim

O cobriram de lama, e essa lama

Sobrou até para sua mãe no fim.

Foi Eubolis, sem dó, que chefiou

Esse ataque furioso contra Hipérbolo.

Ele, a minha comédia “Os Cavaleiros”

Engoliu, e o aborto resultante

Lançou ao palco: um plágio descarado,

Um plágio que, muito naturalmente,

“O Pederasta” foi intitulado.

E para completar, dança indecente

Fez questão de mostrar, para uma bruxa

Feia e velha as cadeiras requebrar.

E ela mesma, aliás, foi imitada

De uma comédia antiga de Firmicos,

Que, por sinal, muito sensatamente

Fez com que a bruxa fosse devorada

Por um monstro do mar. Chega de Eubolis.

Hermipos, depois deles, contra Hipérbolo

A dose repetiu. Logo em seguida

Todos os plagiários da cidade

Investiram sanhudos contra Hipérbolo

E imitaram descaradamente

Minha comparação com as enguias.

Tenho certeza, e isso me faz contente,

De que aqueles que gostam de tais coisas

Detestam o que escrevo. Certamente,

Por outro lado, os homens de bom gosto

Sabem me dar valor e o meu talento

Apreciar. Entrego-me, portanto,

Ao seu esclarecido julgamento.



(Sai Aristófanes.)



Coro

Tu, nosso rei, primeiro invocamos

Lá de seu trono, onipotente deus,

Baixa os teus olhos sobre a nossa dança

E sê conosco, Zeus.



E tu, senhor do mar, grande Poseidon,

Que vences com o tridente toda a luta

Toda a fúria das ondas, ó Poseidon,

A nossa prece escuta.




E tu, Éter etéreo, paternal,

Que pelo ar te espalhas, e senhor

És para nos nutrir e sustentar,

Dá-nos força e vigor.



E tu, cujos corséis o firmamento

Atravessam, levando-te, a brilhar.

Ó Luz Fecunda para o céu e a terra,

Vem nos iluminar.



Corifaios

Senhores Críticos e homens talentosos,

Eu vos peço um momento de atenção.

Já que de nossa peça constam algumas

Verdades e também reclamações,

Temos de ser bem rudes. Não é justo

Sermos, como nós somos, ignoradas.

Nenhum deus, em verdade, já vos trouxe

Benefícios iguais ao que trouxemos.

Somente nós, é certo, em tempo algum

Recebemos sequer um sacrifício.

No entanto, nem há necessidade

De vos lembrar a ternura, o cuidado

Com o que nós vos tratamos. Por exemplo:

Sempre que arquitetais algum projeto

Condenável, nós logo trovejamos

Nossa reprovação. Nossa censura

Vem em forma de chuva irresistível.

Um episódio relembrai recente:

O negro dia em que um repelente

Ateu, um curtidor que se chamava

Paflagon general quis ser eleito?

Recordais qual foi nossa reação?

Como é que escurecemos, trovejamos

“E sem piedade o calcanhar do Raio

Os corséis do Trovão acicatou”?

Como a Lua apagou a sua luz

E o próprio Sol escureceu também,

Sem querer mais iluminar o mundo

Se Cleon fosse eleito? E vós, no entanto,

Elegestes Cleon, alimentando

A curiosa crença que, em Atenas,

Os mais gritantes erros dos políticos,

Acabam lhe trazendo benefícios,

Ou mais cedo, ou mais tarde. De que modo?

Condenando Cleon por peculato

E passando-lhe o jugo no pescoço.

Não somente esta ação está de acordo

Com a longa tradição do Disparate,


Como também ao mesmo tempo serve

Para redimir o próprio disparate.



Coro

Ó tu, senhor de Delos, que freqüentas

Os altos montes, os rochedos rudes,

Onde o cume do Quintos se levanta,

Febo, que nos ajude!



E tu, dama de Éfeso, tu senhora,

Senhora e glória do sagrado altar

Que as mulheres da Lídia tanto adoram,

Ártemis, vem dançar!



E tu, de Delfo alegre dançarino,

Que as Mênadas despertas sem demora

Aos gritos de alegria, Ó Dionísio,

Conosco dança agora!



Corifaios

Nossa massa de Nuvens sobre Atenas

Ia se concentrando e, no caminho

Encontramos a Lua, que pediu

Então que transmitíssemos a Atenas

A seguinte mensagem: “Saudações

Etc. Etc. a Atenas

E aos seus aliados Ponto A minha

Divindade ofendida mortalmente

Com vossa escandalosa grosseria

Apesar do que fiz pela cidade

Ponto Não esqueçais que sou mulher

De ação repito ação e não palavras

Ponto Assinado A Lua”. E, realmente,

Muito deveis à Lua, atenienses.

Graças a seus esforços luminosos,

Com a iluminação podeis poupar

Mais de um dracma por mês tranqüilamente.

Tenho mesmo a impressão de estar ouvindo

Algum de vós assim recomendando

Quando sair de casa, a seus escravos:

“Não precisa de luz, hoje, o luar

Está tão claro!” E o luar realmente

Está às vossas ordens. No entanto

Negastes a fazer um calendário

Lunar perfeitamente formulado.

E o vosso mês, assim, tornou-se um caos,

Obra-prima de pura confusão.

E mais ainda: quando à noite um deus

Chega em casa faminto e não encontra

Nada para jantar, porque vós outros


A festa celebrais em dia errado,

É a coitada da inocente Lua

Que pelo deus furioso é censurada.

E não é isso só: naqueles dias

Em que devíeis cultuar os deuses,

Vos ocupais em discutir demandas

Ou torturar as pobres testemunhas.

E enquanto os deuses jejuando ficam

Vós, no entanto, a grandes comilanças

Vos entregais, e a grandes bebedeiras.

Ficai, portanto, agora advertido.

Ainda bem recentemente, os deuses

De seu lugar Hepérbolo privaram

Na Comissão dos Festivais, querendo

Ensinar-lhe e ensinar a outros iguais

Porque se deve respeitar o tempo.



(Enquanto o Coro retoma a sua posição habitual, a porta do Pensamental se
abre e Sócrates aparece.)



Sócrates

Eflúvio Onipotente! Ozona e Caos!

Em toda a minha vida jamais vi

Tanta burrice, tanta estupidez!

Não tem inteligência nem memória.

Mal eu conseguia, a muito custo,

Lhe impingir um bocado de ciência,

E ele tinha um ataque de amnésia.

É doloroso. De qualquer maneira.

A Verdade é quem manda. Eu obedeço.



(Entra na porta do Pensamental e se some no escuro.)



Onde estás, onde estás, Estrepsíades?

Carrega o teu colchão e vem pra fora.



Estrepsíades

Não posso. Os percevejos não me deixam.



Sócrates

Deixa de história, toleirão. Agora

Presta atenção.



Estrepsíades

Estou prestando.



Sócrates

Pra resumir, então, quero indagar;

De toda a vasta série de matérias

À tua ignorância oferecidas,


Qual especialmente tu desejas

Aprender? Por exemplo: elocução,

O ritmo ou a medida?



Estrepsíades

A medida.

Ainda outro dia, um reles vendedor

De farinha acabou por me lesar

Na medida do artigo.



Sócrates

Não se trata

De medir a farinha, ignorante!

Eu me refiro à métrica, à medida

Que preferes: trímetro ou tetrâmetro?



Estrepsíades

Para medir prefiro a vara mesmo.



Sócrates

Não tem jeito! Burrice irremovível!



Estrepsíades

Sou capaz de apostar que esse teu trímetro

Tem três pés, e não mais. Não é verdade?



Sócrates

Idiota perfeito. Mas quem sabe

Se com o ritmo te darás melhor?



Estrepsíades

O ritmo serve para comprar comida?



Sócrates

Todo aquele que ao ritmo é sensível

Terá da sociedade a porta aberta.

Agrada à alta roda o que distingue

O anapesto do dáctilo comum

Também chamado ritmo digital.



Estrepsíades

Digital, ou do dedo? Esse eu conheço.



Sócrates

Define-o, então.



Estrepsíades (estendendo o dedo médio, em um gesto obsceno)

É mexer com este dedo.

Naturalmente, quando eu era jovem,




(Mostra o pênis.)



Era com este que eu fazia o ritmo.



Sócrates

Bobo alegre!



Estrepsíades

Estás vendo: essa matéria

Não preciso aprender.



Sócrates

Então que queres?



Estrepsíades

Quero aprender, e tão-somente, a Lógica!

Quero aprender a Lógica Imoral!



Sócrates

Mas para isso, meu prezado amigo,

Terás, é claro, de saber ao menos

Primeiro os rudimentos da linguagem.

Vejamos por exemplo: poderás

Me dizer uma lista dos quadrúpedes

Do sexo masculino?



Estrepsíades

Muito fácil.

O carneiro, o cavalo, o touro, o galo...



Sócrates

Nomeie, agora, as fêmeas desses machos.



Estrepsíades

A ovelha e a égua e a vaca e a gala.



Sócrates

Pode parar aí. Tu cometeste

Um grave solecismo. Galo, gala!



Estrepsíades

Tens razão. Que burrice cometi!



Sócrates

Indispensável é que tu aprendas

A distinguir pela terminação

O que é masculino e o feminino,

De outro modo, verás que confusão.




Estrepsíades

Tudo isso é muito certo. Mas me dize

Como me valerá para o que eu quero?



Sócrates

Trata de refletir, raciocinar.

Vai te deitar no teu colchão e trata

De lucubrar o caso.



Estrepsíades

Eu não podia

Então lubrificar mesmo no chão?



Sócrates

Permissão recusada.



Estrepsíades

Oh que destino!

Estão me devorando os percevejos.



(Estrepsíades se mete sob as infestadas cobertas, enquanto Sócrates canta
para encorajá-lo.)



Sócrates

Concentra primeiro,

Depois raciocina,

Concentra de novo.



Lucubra em seguida,

Depois especula,

Rumina afinal.



Se sentes cansaço,

Sê forte, resiste

E fica acordado.



Em suma, reflete,

Rumina, especula,

Mas sempre deitado!



Companheiro do Sono, vinde, vinde!

Ó Dor!



Estrepsíades

Ai! Ai! Ai! Ai! Ai! Ai! Ai! Ai! Ai!



Sócrates

Que tens? O que afinal te está fincando?




Estrepsíades

Ah! Se fosse fincando!

Estão me devorando!

Malditos percevejos!

Mordem meu corpo todo,

Chupam meu sangue todo,

Estão me assassinando!



Sócrates

Meu velho, calma. Não lamentes tanto.



Estrepsíades

Queres que eu não lamente?

Quando estou sem dinheiro

E já sem pele estou?

Quando torço de dor

E o meu sangue secou?



(Há um breve intervalo de silêncio, durante o qual Estrepsíades geme e se
contorce sob as cobertas. Depois Sócrates levanta uma das peles de carneiro
que serve de coberta e olha embaixo.)



Sócrates

De lucubrar paraste, meu amigo?



Estrepsíades

De modo algum!



Sócrates

Que refletiste, então,

É evidente. Sobre o que refletiste?



Estrepsíades

Fiquei imaginando o tempo todo

Se um meio de descobrir não poderia

De me livrar dos percevejos.



Sócrates

Ora!

O que é isso, seu bobo? Não te vexes.

Põe de novo a coberta e te esforças agora

No que buscas de fato. Aqui vieste

Para estudar um meio eficiente

De frustrar teus credores e esbulhá-los.



Estrepsíades

Quem esbulhando quem? É isso, Sócrates,

Que eu queria saber.



(Segue-se outro breve silêncio.)




Sócrates

Hum! Que será

Que ele agora aprontou? Ora, vejamos



(Levanta a pele de carneiro e olha embaixo.)



Dormindo está de novo no trabalho?



Estrepsíades

Não, por Apolo não estou dormindo.



Sócrates

Já teve alguma idéia?



Estrepsíades

Não, nenhuma.



Sócrates

Deves ter encontrado alguma coisa.



Estrepsíades

Apenas o que tenho em minha mão.



Sócrates

Bufão! Vamos, bufão! Pensa, cogita!



Estrepsíades

Mas, caro Sócrates, cogitar o quê?



Sócrates

Acerca do que queres conhecer.

Cogita logo e dize-me depois.



Estrepsíades

Já disse dez mil vezes o que quero:

Livrar-me dos credores. Cancelar

Todas as minhas dívidas. Ouviste?



Sócrates

Ouvi. Deita, portanto, novamente.



(Com certa relutância, Estrepsíades se mete debaixo da coberta.)



Instila, agora, em tua mente, instila

A mais etérea essência, permitindo

Que as essências sutis do pensamento

Penetrem em cada poro do problema.

Bastando depois disso Analisar,

Corrigir, Resumir e Definir.




Estrepsíades (freneticamente, procurando livrar-se dos percevejos)

Uf! Que são demais estes bichinhos!



Sócrates

Pára com isso! Em caso de dilema,

Visa a concatenar todos os dados,

Medi-los e pesá-los, e em seguida

O resultado compulsar por fim.



Estrepsíades

Óóóóóó! Sócrates!



Sócrates

O quê?



Estrepsíades

Eureka!

Um meio achei de liquidar as dívidas!



Sócrates

Explica por favor que meio é esse.



Estrepsíades

Vou explicar. Supõe...



Sócrates

Supõe o quê?



Estrepsíades

Supõe que os serviços eu contrate

De uma das feiticeiras da Tessália,

E lhe ordene que ela encante a Lua

Lá no alto do céu. E eu pego a Lua

E depois de polida e bem polida,

Eu a tranco afinal em uma caixa,

Brilhando como um espelho.



Sócrates

E o que tu lucras?



Estrepsíades

É muito claro: não havendo Lua,

Não haverá mais mês, e, desse modo,

Não terei de pagar juros mensais.

Os juros sempre vencem, não é mesmo?

No exato dia em que termina o mês,

Antes da lua nova. Compreendes?




Sócrates

És, certamente, um perfeito tratante.

Mas vou propor-te um caso mais penoso.

Suponhamos que estás ameaçado

Por uma ação judicial valendo

Cinco talentos. O problema é este:

Como conseguirá invalidar

A decisão?



Estrepsíades

Isso não sei ainda,

Tenho de meditar sobre a questão.



Sócrates

Pois medita bastante. Mas cuidado:

Não vás empanturrar a tua mente

Com uma introspecção exagerada.

Que, ao contrário, tua inteligência

Possa sair em busca da verdade.



Estrepsíades (iluminado de súbito)

Achei, achei! Um logro formidável!

Não poderás negar que é formidável!



Sócrates

Porém primeiro, por favor, expõe

O que pretendes.



Estrepsíades

Tu nunca reparastes nas boticas

Uma bonita pedra transparente

Com ajuda da qual a gente queima

Qualquer coisa?



Sócrates

Eu sei. Vidro de aumento.



Estrepsíades

Muito bem. Isso mesmo. Suponhamos:

Levo comigo uma daquelas pedras;

Quando do tribunal o secretário

Estiver o meu caso registrando,

Então eu atrás dele me coloco,

E o Sol, por sua vez, atrás de mim.

Queimo, letra por letra, a acusação.



Sócrates

Uma boa trapaça, não há dúvida.

Mas vou te apresentar outro problema.




Estrepsíades

Pode dizer.



Sócrates

Supõe que tu encontres

Em tal situação, sem ter defesa,

Sem contares com uma testemunha

Para enfrentar o pleito. O que farias?



Estrepsíades

Antes que meus credores recorressem

Ao tribunal, eu me suicidaria.



Sócrates

És mesmo bobo. Que tolice é essa?



Estrepsíades

Bobagem é que não é, de modo algum.

Pois a verdade é que não poderiam

Acionar um defunto. Não é mesmo?



Sócrates

Idiota! Cretino! Eu não pretendo

Perder contigo o precioso tempo.

Teu Mestre não sou mais. Vai, vai-te embora!



Estrepsíades

Meu Mestre não és mais? Por quê?



(Cai de joelhos, súplice.)



Te imploro!



Sócrates

Mais depressa esqueces do que aprendes

O que tanto me esforço para ensinar-te.

Por exemplo: me dize, qual o assunto

Da primeira lição que te ensinei?



Estrepsíades

A primeira lição? Deixa-me ver.

A primeira?... É a primeira que tu queres?

Ah! Já sei! Foi a fêmea do cavalo!



Sócrates

Idiota! Senil! Incompetente!

Some da minha vista! Vai-te embora!




Estrepsíades

Deuses, deuses do céu! O que vai ser

De mim agora? Pois estou perdido,

Se da palavra o Dom me for negado.



(Cai de joelhos diante do Coro.)



Nuvens, cheias de graça, aconselhai-me.

Dizei-me o que fazer.



Corifaios

Nosso conselho,

Venerando senhor, é o seguinte.

Não tens, acaso, um filho já crescido?

Manda-o vir estudar em teu lugar.



Estrepsíades

É verdade, senhoras, tenho um filho.

Mas é um homem fino, e, como tal,

Detesta todo estudo. Nesse caso,

O que posso fazer?



Corifaios

Ele é quem manda?



Estrepsíades

É um jovem convencido e malcriado.

Ainda assim, porém, darei um jeito.

Ou aceita as lições ou nunca mais

Em minha casa põe os pés de novo!



(Para Sócrates)



Espera. Voltarei agora mesmo.



(Sai Estrepsíades, entrando em sua casa.)



Coro

Vede agora, podeis ver

As muitas bênçãos e graças

Que as nuvens trazem ao passar.



Por exemplo: esse idiota,

Imbecil, asno sem conta,

Cretino, burro sem par.



Mas deixai por nossa conta;

Esse cretino, coitado,

Não perde por esperar.




O peixe pegou a isca,

Podemos limpar o peixe,

Pra depois o peixe assar.



(Sai Sócrates. Entra Estrepsíades, arrastando consigo Feidipides.)



Fora daqui! Pela Condensação,

Não podes ficar, não. Vai sustentar-te

Com o dinheiro do bom tio Megacles!



Feidipides

O que tens, ó meu pai? Enlouqueceste?

Onipotente Zeus, que disparate.



Estrepsíades

Repito eu. Um homem de tua idade

Acreditando em Zeus! Muito engraçado!



Feidipides

Causa-me espécie, afeta a minha mente,

Ver jovens como tu tão iletrados

Quem enchem a cabeça de noções tão falsas.

Agora, ouve, que vou te dizer

Alguns segredos que fazer-te podem

Ainda um homem culto e inteligente.

Não te esqueças, porém: uma palavra

Sequer podes falar do que ouvires.



Feidipides

Uma palavra?



Estrepsíades

Não juraste por Zeus?



Feidipides

Jurei, e então?



Estrepsíades

Fica sabendo agora

Um segredo tão só: Zeus não existe.



Feidipides

Não me digas, meu pai! Zeus não existe?



Estrepsíades

Não existe mais, não. Zeus foi banido.

Só o Princípio da Convecção

Tem o poder agora.




Feidipides

Impossível!



Estrepsíades

É a pura verdade, Feidipides.



Feidipides

E que te assegurou coisa tão séria?



Estrepsíades

Em primeiro lugar, o grande Sócrates

E também o erudito Cairefonte,

Grande conhecedor de pés de pulga.



Feidipides

E levaste a tolice até o ponto

De nesses charlatões acreditar?



Estrepsíades

Cala-te, Feidipides! Que vergonha!

Não quero, ouves bem? Não admito

Que sem respeito assim tu te refiras

A dois tão eminentes cientistas.

Eminentes é pouco: geniais.

E o que é mais: homens extraordinários,

De tal maneira honestos e frugais,

De conduta viril, tão espartana,

Que eles dispensam o corte de cabelos,

Os banhos, o asseio corporal,

Como perda de tempo e de dinheiro,

Enquanto tu, meu filho, tantas vezes

Me obrigas a lavar-me, tantas vezes

Que acho até que estou ficando gasto.

Ouve o que digo agora. Vem, meu filho,

Para o bem de teu pai, vem aprender.



Feidipides

O que ensinam, enfim, que valha a pena?



Estrepsíades

O quê? Todo o saber da humanidade

Acumulado em séculos. Exemplo:

A essência do saber e do agrião.



Feidipides

Agrião! Com efeito! E foi então

Para aprender tal coisa que buscaste

A lição desses mortos ambulantes?




Estrepsíades

Não. Me ensinaram muitas outras coisas,

Interessantes, que porém (e é pena)

Por um ouvido entraram e pelo outro

Logo saíram.



Feidipides

E que, sem dúvida, explicam

Como perdeste o manto.



Estrepsíades

Não perdi.

Tirei-o.



Feidipides

E as sandálias aonde foram?



Estrepsíades

Quando foi indagado certa vez

Aonde fora o dinheiro, o grande Péricles

Respondeu: “Despendido com a despesa.

Nada há explicar”. E agora, filho,

Atende ao que te peço, depois podes

O que tu muito bem quiseres.

Compensa o que te fiz quando ainda eras

Uma criança, e as tuas pirraças

Tinha que obedecer. Ainda me lembro:

No mesmo dia em que eu recebi

Pela primeira vez na minha vida

A remuneração como jurado,

Gastei logo o dinheiro, para comprar

Um carrinho que viste no mercado.



Feidipides

Está bem. Está bem. Faço o que queres.

Mas tu irás arrepender um dia.



Estrepsíades

És um bom filho, obediente. Sócrates,

Salve! Podes sair. Trouxe meu filho.

Tudo vai correr bem, graças a ele.



(Sócrates entra, saindo do Pensamental.)



Sócrates

Ele é ainda um menino! De que modo

Um rapazinho como esse teu filho

Pode operar o Cesto Pendurado?




Feidipides

Não será preferível, eu pergunto,

Pendurar-te tu mesmo, e não o cesto?



Estrepsíades

Que desrespeito é esse? O Mestre insultas?



Sócrates (arremedando Feidipides)

“E não o cesto?” É tão engraçadinho

Esse menino! E tão adiantado!

Já sabe caminhar. Já faz beicinho.

Ora! Como esperar que um feto desses

Vá aprender as artes da Intriga,

Do Falso Testemunho, da Trapaça,

Do Subterfúgio e da Difamação?

Se bem que a confessar sou obrigado

Que não falta ao caso um precedente.

Até o próprio Hipérbolos, é certo,

Pôde aprender as manhas do negócio,

Em troca de soberbos honorários.



Estrepsíades

Não te preocupes, Sócrates. O jovem

É um filósofo nato, podes crer.

Desde muito pequeno ele mostrava

Inteligência e muita habilidade,

Fazendo coisas muito interessantes:

Com pedaços de couro modelava

Casinhas de bonecas e barquinhos,

E com cascas de fruta ele fazia

Uns sapos que eram mesmo uma gracinha.

É também, por sinal, muito instruído.

Pode ensinar-lhe, pois, as duas Lógicas:

A Filosófica, que é tradicional,

E a Lógica Sofística moderna

Também chamada Lógica Imoral,

Que pode ser menos moral que a outra,

Porém é muito mais eficiente.

De qualquer forma, se ele se mostrar

Incapaz de aprender ambas as Lógicas,

Faço questão, e sei que isso ele aprende:

A maneira imoral de argumentar.



Sócrates

Pessoalmente ele será instruído

Pela Filosofia e também

Pelo Sofisma. Solicito, agora,

Licença para sair.




Estrepsíades

Lembra-te, Sócrates:

Quero-o capaz de rir-se da verdade.



(Sai Sócrates. Depois de sua saída, a Porta do Pensamental e a Filosofia e o
Sofisma são trazidos dentro de gaiolas douradas dispostas sobre rodas. Dos
ombros para baixo, são ambos humanos. Dos ombros para cima, são galos de
briga. A Filosofia (ou a Lógica Tradicional) é um galo grande, musculoso,
robusto, mas não pesado, expressando em seus movimentos a harmonia e a
graça interiores e a dignidade que a Educação Antiga era capaz de produzir. O
Sofisma, ao contrário, é relativamente franzino, de ombros caídos, de uma
palidez doentia, com uma enorme língua e um falo desproporcionalmente
grande. Seu corpo é pouco elegante, mas dotado de movimentos
extremamente rápidos; todos os seus movimentos revelam uma desafiadora
belicosidade, e a sua plumagem é brilhante até o ponto de cintilar. O debate
teve de ser travado a grande velocidade, com muitas bicadas e esporadas.
Quando os Criados abrem as portas das gaiolas, os galos de briga saem e
começam a rodear um ao outro, procurando tomar posição para o embate.)



Filosofia

Vamos, vamos, Penosa Impertinência,

E diante assim do respeitável público,

Faze uma respeitosa reverência.

Gostas de pimponar. Está na hora.



Sofisma

Está mesmo na hora, Massa Informe,

Quanto maior a multidão, maior

O prazer de poder, diante dela,

Te refutar.



Filosofia

Tem graça. Refutar-me!

Quem pensas que tu és?



Sofisma

Sou uma Lógica.



Filosofia

Tu, uma Lógica, vil Loquacidade?

Palavrório vazio!



Sofisma

Não me importo

Ser chamado de Sofisma. Eu te liquido.

Vou refutar-te.



Filosofia

Com o que não é convencional, e ainda

Com o ultramodernismo, e assim também


Com idéias de todo heterodoxas.



Filosofia

Essa moda que ora predomina

Devemos a essa corja de imbecis...



Sofisma

Imbecis? Cavalheiros requintados.



Filosofia

Eu te invalidarei.



Sofisma

Invalidar-me?

Que estás pensando, seu defunto andante?



Filosofia

Meus argumentos são, convém saber,

A Verdade e a Justiça.



Sofisma

Eu te desarmo.

E te derroto, com Justiça e tudo.

Não existe a Justiça.



Filosofia

Não existe?

Tem graça!



Sofisma

Então, me mostra onde ela está.



Filosofia

Onde está a Justiça? Muito fácil:

No regaço dos deuses.



Sofisma

No regaço

Dos deuses? Então podes me explicar

Como Zeus escapou da punição,

Depois de ter prendido o próprio pai?

A incoerência é clara como a água.



Filosofia

Tagarela asqueroso! Tu me enojas!



Sofisma

Decrépito! Senil! Velho caduco!




Filosofia

Pederasta precoce! Pervertido!



Sofisma

Pode atirar-me roas e mancheias.



Filosofia

Ó cogumelo vil! Ó vil latrina!



Sofisma

Com uma coroa de viçosos lírios

A minha fronte cinge.



Filosofia

Parricida!



Sofisma

Uma chuva de ouro sobre mim

Faze cair. Não vês que eu me deleito

Com os teus insultos?



Filosofia

Te deleitas, monstro?

Em meu tempo, eu teria te cingido

De vergonha.



Sofisma

Porém hás de convir

Que hoje as coisas mudaram. O que era errado

No teu tempo, é o certo e a moda agora.



Filosofia

Fedelho repulsivo!



Sofisma

Vil pedante!



Filosofia

Por tua culpa só e tão-somente

As escolas de Atenas estão vazias.

E por isso, ociosa e pervertida,

Toda uma geração nas ruas vaga.

Escuta o que te digo: no futuro

Saberá a cidade o que fizeste:

Os seus filhos viris tu os tornaste

Tolos e efeminados.



Sofisma

Idiota!




Filosofia

Enquanto isso, por tua vez, viraste

Um peralvilho muito presunçoso,

Mas me recordo bem de teu começo

Humilde e triste, em que representavas

Bem igual a Telefos, embrulhado

No trapo e no farrapo euripediano.



Sofisma

Quanta sabedoria havia ali!



Filosofia

E que prodígio de loucura aqui!

Tua loucura, e, mais louca que tu,

Esta cidade, pois só louca pode

Permitir que tu vivas, miserável,

Corruptor de sua juventude!



Sofisma (lançando uma asa em torno de Feidipides)

Fica sabendo, seu Defunto Vivo,

Que a este aluno jamais ensinarás.



Filosofia (puxando Feidipides para trás)

Hei de ser o seu Mestre, a menos que

Se dedique à carreira da sandice.



Sofisma

Vá esperando. Vem comigo, jovem.



Filosofia

Para à desgraça caminhar?



Corifaios (intervindo)

Senhores!

Chega de altercações e de injúrias.

Que cada um, por sua vez, exponha

Seus argumentos. Tu, Escola Antiga,

Descreve, com clareza e cortesia,

Como ensinaste os homens do passado,

E tu descreve a Nova Educação.



Filosofia

Apoio essa proposta.



Sofisma

E eu também.



Corifaios

Muito bem. Qual dos dois fala primeiro?




Sofisma

Que ele comece. Ficarei ouvindo.

Depois, porém, que ele tiver falado,

Lançarei sobre ele esmagadora

Concentração do Pensamento Novo

E dos Pontos de Vista Derradeiros,

Que vão deixá-lo sem poder falar.



Coro

Com atenção ouçamos. Afinal

A Grande Discussão vai começar.

Entre os dois decididos campeões

Quem vai ganhar ninguém pode saber.

Ambos são hábeis, destros e sutis,

Mestres no ataque e na defesa, mestres

No insulto soez e na agressão.

Do pleito o prêmio é a Sabedoria.

Da perícia dos dois contendores

O destino depende inteiramente

Do idioma e da mentalidade,

Da educação, enfim, de toda Atenas.



Corifaios

Tem a palavra a Filosofia.

Fala, portanto, ó tu, que conferiste

A virtude às antigas gerações.

Fala com confiança, e nos explica

O que na realidade representas.



Filosofia

Quero falar da Educação Antiga,

E como floresceu nos velhos tempos

Dirigida por mim. A Honestidade

Sem atavios, a Linguagem Clara

E a Verdade eram honradas, praticadas.

E em todas as escolas de Atenas

Se seguia o regime dos três DD:

Disciplina, Decoro e Dever.

O programa era a Música e a Ginástica,

Ensinadas de acordo com o ditado:

“As crianças são vistas, não ouvidas”.

Este era o princípio cardeal.

Os alunos, em grupos divididos,

Conforme a região de onde vinham,

Em esquadras marchavam para a escola

Disciplinados e silenciosos.

E eram jovens bem fortes, resistentes.

Mesmo em manhãs de inverno, quando a neve

Caía, a sua única proteção

Contra o rigor do tempo era uma túnica


Muito leve e bem fina. E nas salas

De aula eram os alunos colocados

Em filas e de pé, e muitos atentos

Escutavam as lições e as repetiam

Muitas vezes, de cor, seguidamente.

A própria música era tradicional:

Entoavam-se, então, hinos e cânticos

Bem conhecidos, como, por exemplo,

O que começa: “Uma voz vem de longe”

Ou “Salve, Palas ultriz” e outros cantos

De uma simplicidade que encantava.

Brincadeiras na aula eram severa

E decididamente proibidas.

Aqueles que quisessem improvisar

Ou usar os torneios e trinados

Então em voga na degenerada

E efeminada escola de Frinis,

Eram severamente castigados

Por ultrajaram as Musas. No ginásio,

Também todo o decoro era exigido.

Nus em pelo os alunos reunidos

Pudicamente as pernas estendiam

Para frente, dos olhos curiosos

Escondendo a nudez. Tão recatados

Eram os jovens então, que sempre tinham

O cuidado de bem limpo deixarem

O lugar onde tinham se sentado,

Para que acaso o traço sobre a areia

Por suas próprias nádegas deixado

Chegar não fosse a provocar desejos.

Era proibido ungir com óleo o corpo

Para cima do umbigo, e, em conseqüência,

O órgão genital era mantido

Com toda a exuberância juvenil.

Para os amantes o comportamento

De todos eles era bem viril.

Não eram vistos em pares aos cochichos,

Nem soltando gritinhos nem olhares

Provocantes lançarem, requebrando.

Na mesa, a educação e a cortesia

Eram cumpridas rigorosamente.

Nenhum jovem jamais se atreveria

A salada sequer provar, sem antes

Terem sido servidos os adultos.

Comida temperada era proibida.

Proibido também dar gargalhadas

Ou as pernas cruzar...




Sofisma

Quanta bobagem!



Filosofia

Bobagem? Esses preceitos produziram

Os heróis que venceram a Maratona.



(ao Sofisma)



E tu o que ensinas? A modéstia?

Apenas a vaidade e a frouxidão.

A beleza do corpo nu oculta

Por pesadas e feias vestimentas,

Pouco viris também. Fico enojado

Se nas Panetenéias vejo os jovens

Dançarem do seu corpo envergonhados.

Esquecendo, de fato, o seu dever

Para com os nossos deuses, quando atrás

Dos seus escudos a nudez escondem.



(A Feidipides)



Eu te convoco, jovem. Vira as costas

À atração do vício, às artimanhas

Dos tribunais e à fácil, preguiçosa

Corrupção dos banhos. Ao contrário

Escolhe a Antiga Educação, baseada

Na sã Filosofia. Jovem, segue-me

E dos meus lábios, sem temor, aprende

As virtudes do homem: a mente sã,

A decência e a inocência que não vão

Permitir que do mal te aproximes.

Que te sintas furioso, indignado,

Quando a tua honra sentes ultrajada.

Para com os mais velhos, deferência;

Respeitar pai e mãe; manter intacta

A imagem de modéstia assaz viril

Que servirá de guia em tua vida.

Sê puro, evita os sórdidos bordéis,

O amor prostituído, que corrompe

Teu caráter viril, e que rebaixa

Tua reputação. Para teu pai

Mostres sempre total obediência.

Respeita o fim da vida de quem antes

Te criou, te tratou, quando mais moço.

Jamais o chame de velho ou caduco...



Sofisma

Meu jovem, se seguires tais conselhos,

Acabarás ficando efeminado


Como os filhos de Hipócrates. Cuidado!



Filosofia

Muito ao contrário disso, eu te prometo,

Não discussões estéreis, não pendências

Judiciais repletas de chicana,

E sim lutas atléticas, viris,

Disputadas por jovens musculosos

Repletos de vigor e de saúde.

Parece-me ver-te agora, em um idílio

Com outro jovem de tua mesma idade,

Tão modesto e viril como tu mesmo,

Caminhando talvez na Academia,

Ou entre os olivais, ambos coroados

De pâmpano e respirando o ar sadio

Da primavera, a súbita fragrância

Do início da estação. Portanto, ó jovem,

Segue os meus passos e conquistarás

A perfeição do físico, a saber



(Demonstrando cada tributo individualmente)



FORMA, Estupenda.

CÚTIS, Magnífica.

OMBROS, Gigantes.

LÍNGUA, Bem Pequena.

NÁDEGAS, Robustas.

PÊNIS, Discreto.

Se seguires, porém, a outra parte,

É esta a recompensa que terás:

FORMA, Efeminada.

CÚTIS, Macilenta.

OMBROS, Caídos.

LÍNGUA, Enorme.

NÁDEGAS, Molengas.

PÊNIS, Desprezível!

Mas é verdade que terás também

Muitos e dedicados partidários.

E o que é pior, irás acostumar-te

A zombar da moral, não distinguindo

O bem do mal e o mal do bem. Em suma

Coberto ficarás de vilania,

Indecência, desonra e perversão.



Coro

- Bravo! Que brilho! Que vigor! Que belo!

Que saber! Que modéstia! Que decoro!

Nem uma só palavra esperdiçada!

Felizes foram aqueles cujas vidas

Nas virtudes antigas se apoiaram!




(Para o Sofisma)



A despeito de tua sutileza,

De tua habilidade, tem cuidado.

Teu rival conseguiu lavrar um tento.

Muito vigor precisas para vencê-lo.

Podes falar agora. A vez é tua.



Corifaios

A não ser que prepares com cuidado

Tua estratégia e, ferozmente, ataques,

Terás perdido a causa, e saíras

Daqui como motivo de chacota.



Sofisma

Até que enfim! Se mais alguns minutos

Tivesse que esperar, eu morreria

Até, de impaciência, do desejo

De refutar e de arrasar o outro.

Muito bem. Pra começo de conversa,

Tenho de admitir que, entre os letrados

E os pedantes, costumo ser chamado

- Pejorativamente algumas vezes -

De Lógica Sofística, Imoral.

E por quê? Porque eu fui o primeiro

A construir um Método capaz

De subverter as Crenças Sociais

De há muito respeitadas e seguidas

E a Moral respeitada solapar.

Além de tudo, uso um certo truque,

Invençãozinha que a mim mesmo devo,

Que é o de utilizar um argumento

Que parece o pior dos argumentos,

E acabar vencendo, no entanto.

E essa minha invenção tem se mostrado

Extremamente lucrativa como

Fonte de rendimentos. Vede, agora,

Como eu refuto a vã Filosofia.



(Para a Filosofia)



Em teu programa escolar proíbes

Absolutamente os banhos quentes.

Podes expor-me agora os argumentos

Em que se funda tal proibição?



Filosofia

O que mais poderia eu aduzir?

Os banhos quentes fazem muito mal,


Tornam o homem frouxo, efeminado.



Sofisma

‘Não me digas mais nada. Isso é bastante.

Estás em minhas mãos, completamente.

Responde-me de pronto: quem dos filhos

De Zeus foi mais valente, mais heróico?

Quem mais aos sofrimentos resistiu?

Quem executou as mais duras tarefas?



Filosofia

Na minha opinião, Héracles foi

O maior dos heróis que o mundo viu.



Sofisma

Quando tu te referes aos famosos

Banhos de Héracles, referindo estás

A que espécie de banhos: frios, quentes?

É claro que são quentes. Assim sendo,

Por tua própria lógica era Héracles

Efeminado e frouxo.



Filosofia

Idiotice!

A tua lógica é dessas que se usam

Entre esses jovens desfibrados, torpes,

Que esvaziam os ginásios e enchem os banhos.



Sofisma

Muito bem. Prossigamos. Se quiseres

Considerar a nacional paixão

Pela política e pelo debate

Um mal, muito ao contrário eu a aprovo.

Se a política fosse razoavelmente

Tão nefasta e tão má como sustentas,

Então jamais o venerando Homero

- Nosso guia e mentor quanto à Moral -

Jamais, jamais teria retrato

Nestor e outros velhos respeitáveis

Como políticos. Não é mesmo claro?

Agora examinemos a questão

De estudarem os jovens a oratória,

Coisa que eu defendo e tu condenas.

Quanto ao Decoro e à Moderação,

Estas próprias noções são absurdas.

Acho mesmo difícil conceber

Preconceitos tão tolos, ou melhor

Mais que tolos: prejudiciais.

Poderias, por acaso, me citar

O exemplo de um homem que lucrou


Com a moderação? Um só exemplo.



Filosofia

Os exemplos abundam. Eu citaria...

Por exemplo, Peleu. Sua virtude

Conquistou-lhe uma espada.



Sofisma

Ora, uma espada!

Que grande prêmio pra tão grande tolo!

Vejamos nosso Hipérbolos. Sem dúvida

Virtude é coisa que ele nunca teve.

No entanto, viveu à tripa forra,

Teve dinheiro a rodo. Não espadas.

Espada não combina com Hipérbolos.



Filosofia

Além disso, porém, a castidade

De Peleu conquistou o amor da deusa

Tétis, que se tornou a sua esposa.



Sofisma

Exatamente. Mas o que fez Tétis

Depois do casamento? Despediu-o,

Por ser frio demais, com espada e tudo.



(A Feidipides)



Eu te aconselho, jovem, a encarares

Com cuidado o caminho da Virtude,

Pois se acaso o seguires, não te esqueças:

Despedirás de todos os prazeres

Que hoje te deleitam. Por exemplo:

Sexo, glutoneria, jogatina

Badernas, bebedeiras etc.

O que farás na vida, jovem e forte,

Se deixares de lado tais deleites

Essas pequenas alegrias? Pensa

Em tuas naturais necessidades.

Supões que, sendo exemplo da virtude,

Cometas, algum dia, um pecadilho,

Uma seduçãozinha, um adultério,

E, por azar, tu sejas apanhado

Com a boca na botija. Que farias?

Tu estarias desmoralizado,

Não poderias defender-te, é claro,

Sem ter nunca aprendido como agir

Em tal situação imprevisível.

Segue, porém, os meus conselhos, jovem,

E faz o que te dita a natureza.


Goza a vida, diverte-te e te rias

Do mundo sem escrúpulos. Se acaso

Em flagrante tu fores apanhado,

Afirma simplesmente ao pobre corno

Que não tens culpa, e invoca como exemplo

O Zeus onipotente, que não pode

Ver mulher sem tratar de conquistá-la.

Se um tão grande e poderoso deus

Não pode resistir, como querer

Que um pobre mortal tenha a arrogância

De ministrar ensinos de moral

Aos deuses imortais? Não é possível.



Filosofia

Mas supõe que, aceitando o teu conselho,

O teu discípulo seja condenado,

Por adultério, a ter um rabanete

Enterrado no reto? Por acaso

Poderias salvá-lo?



Sofisma

Um rabanete!

Achas mesmo, confessa, uma desgraça

Tão grande ter um rabanete

Enfiado no rabo?



Filosofia

Para mim

Não pode haver nada mais degradante

Do que ter um rabanete em tal lugar.



Sofisma

E o que dirias, se eu te derrotasse

Neste campo também?



Filosofia

Nada diria.

Não abriria nunca mais a boca.



Sofisma

O que achas que são nossos juristas?



Filosofia

Pederastas passivos.



Sofisma

Muito bem.

E os poetas trágicos?




Filosofia

O mesmo.



Sofisma

Políticos?



Filosofia

Também a mesma coisa.



Sofisma

É assim? Pois então, agora olha

Para a nossa audiência. Estás olhando?



Filosofia

Estou. Atentamente.



Sofisma

E o que tu vês;



Filosofia

Muitos homens eu vejo, e quase todos

Pederastas passivos.



(Apontando para alguns indivíduos no público)



Vê aqueles

De cabelos compridos? Têm de ser.



Sofisma

E agora dize, amigo, onde chegamos.



Filosofia

Fui derrotado pelos Pederastas

Passivos. Vou me retirar. Só isso.



(Atira seu manto para o público)



Tomai meu manto e recebei-me, ó vós,

Pederastas Passivos. Terminou.



(Visivelmente furioso, Filosofia desaparece em sua gaiola, que é empurrada
para dentro do Pensamental, no mesmo momento em que Sócrates sai de lá.)



Sócrates

Que decidiste, então? Levar teu filho

Ou deixá-lo aqui para aprender

A Arte da Chicana?



Estrepsíades

Pode ensiná-lo,


Castigá-lo, também. Mas não te esqueças:

Quero que a sua língua fique, em suma,

Tão afiada como uma navalha.

Do lado esquerdo afia-a para as causas

Particulares, porém, do direito

Para os Negócios Públicos e as grandes

Ocasiões e Oportunidades.



Sócrates

Podes ficar tranqüilo. Eu te prometo

Que ele será, quando voltar pra casa,

Um perfeito sofista.



Feidipides

Que canalha!



(Saem Sócrates e Feidipides, entrando no Pensamental)



Corifaios

Muito bem. Pode entrar.



(A Estrepsíades)



Ainda irás

Muito te arrepender do que fizeste.



(Sai Estrepsíades, entrando em sua própria casa, enquanto o Coro se vira
abruptamente e olha o público.)



E agora, permiti, Nobres Juízes,

Que umas poucas palavras nós digamos

A respeito do Prêmio e das vantagens

Que podeis ter “As Nuvens” premiando.

Em primeiro lugar, quando chegar

A Primavera, ocasião de serem

Os campos bem arados, prometemos

Fazer com que todos os vossos campos

Tenham a prioridade assegurada

Nas chuvas que caírem. E além disso,

Aos vinhais e pomares garantimos

Um tempo bom, sem seca nem excesso

De chuvas e umidade. Se , porém,

Algum mortal da nossa divindade

Se atrever a zombar, será punido.

Sem chuva, em suas terras ressecadas

Não há de germinar uma semente.

Nos vinhais, nos pomares, uma fruta

Sequer há de chegar a ser madura.

E quando o oleiro os seus tijolos queime,

De água cobriremos o seu forno


E a chuva apagará de todo o fogo.

Se ele próprio, os parentes, os amigos

Tentarem celebrar um casamento,

Não vamos permitir com tanta chuva.

Fique bem claro que melhor seria

Para alguém ser torrado ao sol do Egito

Do que votar errado neste dia!



(Entra Estrepsíades, saindo de casa, e contando na ponta dos dedos.)



Cinco, quatro, três dias, dois, depois

Aquele dia que, de todos eles,

É o dia que mais temo em todo o mês:

O da lua minguante e lua nova,

Quando os credores todos da cidade

A cobrar o que evo estão dispostos,

Levando-me, pra isso, aos tribunais

E me arruinando inteiramente.

Quando lhes peço para serem humanos,

Recebendo por conta alguma coisa

E o principal para depois deixando,

Me chamam de velhaco e de tratante

E querem tudo receber. No entanto,

Se Feidipides tiver aprendido

A bem falar, eu não terei mais medo

Dos credores e suas ameaças.

Basta bater na porta e terei logo

A devida resposta.



(Bate na porta de Sócrates e grita)



Olá, porteiro!



(Sócrates abre a porta.)



Sócrates

Ah! É Estrepsíades. Saúde!



Estrepsíades

O mesmo para ti. Aqui está

Um modesto sinal da minha estima.

Pode chamá-lo de honorário. Os Mestres

Costumam receber os honorários.



(Encolhendo a mão que tem a bolsa de dinheiro.)



Mas espere. Já aprendeu Feidipides mesmo

A Retórica que ainda há pouco tempo

Foi para nós exposta?




Sócrates (pegando a bolsa)

Aprendeu bem.



Estrepsíades

Ó grande deusa da Trapaça!



Sócrates

Agora

Ele pode evitar qualquer ação

Judicial que queiras.



Estrepsíades

Realmente?

Mesmo quando se trata de dinheiro

Emprestado diante de testemunhas?



Sócrates

Mesmo mil testemunhas. Quanto mais,

Mais divertido há de ser no fim.



Estrepsíades (parodiando)

Que muito alta, a minha voz

Entoe cânticos joviais.

Chorai, chorai, ó agiotas,

Vós que emprestais, rangei os dentes,

Vós que lucrais os altos juros.

Eis que surgiu em minha casa

Um filho bom, língua afiada

Como navalha de dois gumes.

Salve, ó herói da minha casa,

Que libertaste o meu lar,

Que escorraçaste os inimigos

E aliviaste a dor de um pai!

Avante filho! Avante, filho!

Sai triunfante do meu lar,

Teu pai ajuda, por favor!



(Feidipides, a própria imagem da “juventude moderna”, sai do Pensamental,
com ar de desdém.)



Sócrates

Eis o homem!



Estrepsíades

Meu filho, que alegria!



Sócrates

Pode levá-lo.




Estrepsíades

Oh meu filho! Oh!

Com que alegria olho teu rosto pálido,

Tua fisionomia que parece

Refletir negativas e chicanas!

Como lembres a réplica forense,

O grande distintivo nacional.

Sendo, de certo, espertalhão perfeito,

E com cara de vítima, no entanto.

E essa lividez em tuas faces!

Realmente uma tez ateniense!

Muito bem. Como tu me arruinaste,

Agora te compete socorrer-me.



Feidipides

O que afinal de contas te ameaça?



Estrepsíades

Tuas malditas dívidas e a data.

Hoje é o dia que é último e primeiro.



Feidipides

Como pode ser último e primeiro?



Estrepsíades

Sei lá. Somente sei que hoje é o dia

Em que a lei determina que os credores

Depositem a fiança na justiça

A fim de acionarem os devedores.



Feidipides

Perderão a fiança, pois é claro

Não pode ser um dia ao mesmo tempo

O primeiro e o último.



Estrepsíades

É lei.



Feidipides

Então, eu acho que essa lei das dívidas

Tem sido interpretada muito mal.



Estrepsíades

É mal interpretada? Como assim?



Feidipides (enigmaticamente)

Amava muito o povo o velho Sólon.




Estrepsíades

E o que tem isso a ver com o pagamento?



Feidipides

É muito fácil responder: se o velho

Sólon amava o povo de verdade

Que gostava mais dos pobres,

Que são a maioria, que dos ricos,

E assim, o devedor, naturalmente,

Mais do que do credor. Por conseguinte

Não haveria de marcar dois dias

A favor do credor, e sim dois dias

O devedor favorecendo. Assim

Sendo impossível ao credor mover

Uma ação contra o outro, pois no último

Dia do mês, isto é, da lua cheia,

Teria de fazer a garantia

Em dinheiro, perante o tribunal

Para mover a ação. Coisa impossível

Pois só no outro dia, isto é, o primeiro,

Obrigada seria a outra parte

A saldar sua dívida.



Estrepsíades

No entanto,

Os magistrados mandam o devedor

Pagar no último, isto é, primeiro dia,

Não no dia seguinte, mas na véspera.

Por que é que fazem isso?



Feidipides

Justamente

Por serem magistrados. Como tais

São tão gananciosos que só pensam

Em receber de pronto a percentagem

Que lhes cabe nas custas processuais.

Mas é claro que o seu procedimento

É de todo ilegal.



Estrepsíades (perplexo)

É mesmo, filho?



(Subitamente iluminado)



Muito bem! Muito bem!



(Voltando-se para o público)



E vós, aí?

Sim, vós mesmos, cretinos! Vós carneiros


Com cabeças de pombo! Presa fácil

Do palavroso esperto e do sofista.

Cambada de idiotas! Tenho dito.

E agora cabe bem uma canção

Que eu compus, como homenagem justa

Ao meu querido filho e a mim mesmo,

Com os mais calorosos parabéns

Pelo nosso sucesso. Todos prontos?



(Cantando e dançando)



Estrepsíades, Estrepsíades,

Não há ninguém igual a ti!

Ele com Sócrates estudou,

Todos sofismas aprendeu.

É mais esperto do que Eurípedes,

Tal é meu filho!

Melhor que ele

Apenas eu.



(A Feidipides)



Quando nos tribunais tu derrotares

Os meus credores, a cidade inteira

Vai me invejar. Avante, pois, meu filho!



(Saem Estrepsíades e Feidipides, entrando na casa. Um momento mais tarde,
entra Pásias, com sua testemunha, trazendo um mandado contra Estrepsíades.
Homem esbanjador, beberrão e comilão. Pásias é grotescamente gordo. De
bom gênio, sabe que tem de enfrentar uma tarefa difícil e vem armado com um
garrafão de vinho, do qual de vez em quando toma um gole, para se fortalecer.)



Pásias

O que devo fazer? De mão beijada

Entregar o dinheiro que ganhei

Com esforço, o suado dinheirinho?



(Algo em suas próprias palavras o faz lembrar que está precisando de um gole,
e de um bom gole.)



Este meu grande coração! Sou bobo!

Preciso ser mais duro! E hei de ser!



(Fortalece-se com um gole.)



Se eu tivesse negado a atendê-lo

Quando me procurou, não estaria

Metido até os pés nesta enrascada.



(Para a testemunha)




Trouxe-te até aqui para servires

De testemunha, quase contra a tua

Vontade, e o que é pior, vou me tornar

Inimigo do velho Estrepsíades

Para o resto da vida. Só bebendo

Mais outro gole.



(Fortalece-se com outro gole.)



Mas eu não desisto.

Vou cobrar do velho. Eis que Atenas

Assim espera, e não dirás que Pásias

Desrespeitou a Honra Nacional.



(Grita na porta da casa)



Estou te acionando, Estrepsíades!



Estrepsíades (aparecendo na porta)

Está aí alguém que me procura?



Pásias

Sou eu. Vim te cobrar.



Estrepsíades

Cobrar o quê?



Pásias

Ora! O dinheiro que eu te emprestei

Para comprares um cavalo.



Estrepsíades

Eu?!

Eu detesto cavalos. Todo o mundo

Sabe disso. Tu podes perguntar

A quem quiseres. Todo o mundo sabe.



Pásias

Mas tu juraste que me pagarias!

Juraste pelos deuses!



Estrepsíades

Pois agora,

Juro que não jurei. De qualquer modo,

Tudo aquilo foi antes de meu filho

Ter aprendido a Ciência do Argumento

Irrespondível.




Pásias

É por isso então

Que não pagas?



Estrepsíades

E onde encontrarias

Argumento melhor? Tenho o direito

De ser devidamente compensado

Pelo que despendi para educá-lo.



Pásias

E estás mesmo disposto a perjurar

Quando juraste pelos deuses?



Estrepsíades

Deuses?

Que deuses?



Pásias

Ora! Zeus, Poseidon, Hermes.



Estrepsíades

Então, pior para eles, se jurei.

Jurei e perjurei, amo o perjúrio.



Pásias

Trapaceiro! Malandro! Mentiroso!



Estrepsíades (Cutucando a barriga de Pásias)

Que pança, sim senhor! Que respeitável!



Pásias

Pelos deuses, esta é a última gota!



Estrepsíades

Que pança! É uma barrica direitinho!



Pásias

Ó Zeus! Ó deuses todos das alturas!

Não penses que tu vais, Estrepsíades,

Escapar desta vez como pretendes.

Não vais, não vais, por Zeus e os deuses todos!



Estrepsíades

Bem me importo contigo e com os teus deuses!

Zeus é uma burla para quem raciocina.



Pásias

Por Zeus, tu vais te arrepender, patife.

E agora dize-me a última palavra.


Vais me pagar ou não? Dá a resposta.

E hei de me retirar logo que o faças.



Estrepsíades

Espera um pouco, então. Voltarei logo

E te direi a decisão final.



(Estrepsíades entre apressadamente em casa.)



Pásias (para a Testemunha)

O que estará ele fazendo? Achas

Que vai mesmo pagar o que me deve?



Estrepsíades (reaparecendo fora de casa, trazendo na mão um grande cesto)

Que é de meu credor? Ah! Ei-lo aqui.



(Empunhando o cesto diante do rosto de Pásias)



Queres dizer-me o que é isto?



Pásias

Um cesto.



Estrepsíades

Um cesto? Como, ignorante assim,

Tu te atreves a vir aqui dizer-me

Que te devo pagar? Que argumentos

Serás capaz de apresentar, a fim

De tua pretensão justificares?

Jamais darei de meu dinheiro um níquel

A um homem tão letrado, que não sabe

Uma cesta de um cesto distinguir.

Escuta aqui, bolota e toucinho,

Por que, em vez de grunhir, não te derretes?



(Ameaça bater em Pásias com a cesta.)



Pásias

Vou mesmo retirar-me. Mas eu juro

Pelos deuses, que vou agora mesmo

Minha queixa levar ao magistrado,

Ou não me chamo Pásias!



Estrepsíades

Pobre Pásias!

Além de tantos outros prejuízos,

Vais perder a fiança judicial.

Para falar a verdade, eu nem queria

Ver-te sofrendo tanto só porque

Não conheces um pingo de gramática.




(Bate na cabeça de Pásias com a cesta.)



Cesta! Cesta, e não cesto. Não te esqueças!



(Pásias sai correndo, perseguido por Estrepsíades. Um pouco depois, ouvem-
se, vindos de fora do palco, gemidos e gritos horríveis, seguidos pela patética
entrada de Amnias, jogador e efeminado, que acaba de ter tido um acidente
com seu carro e entra em estado miserável: a cabeça coberta de sangue, as
roupas rasgadas, enquanto as suas palavras, delirante mistura de retórica
trágica e acentuado ceceio, são quase ininteligíveis.)

Aminias

Ai! Ai! Ai! Pobre de mim! Ai! Ai! Ai!



Estrepsíades

Deuses do céu! Que gritaria é essa?

Quem és tu? Por que toda essa algazarra?

Lamuriento assim e gemebundo,

Até paraces um daqueles deuses

Sofridos das tragédias de Carquinos.



Aminias

Saber queres quiçá quão alto eu seja?

Sabei, pois, e o saber te inspire:

Sou homem valoroso, mas infausto,

Pela Adversidade perseguido.



Estrepsíades

Desinfeta o terreno, então, seu coisa!



Aminias

Ó dia negro! Ó trágico destino!

Como sofrer o que sofri, ó Palas!

Ó quão desventurada a minha sorte!



Estrepsíades

Já sei. És um ator e estás querendo

Que eu adivinhe o que representas.

Que é um papel feminino não há dúvida.

Mas é claro! É o papel de Alcmene

Na Peça de Xenocles, e estás

Do teu saudoso irmão chorando a morte.



Aminias

Chega de palhaçadas. É melhor

Pedires a teu filho que me pague

O que me deve. Estou, como tu vês,

Em pavoroso estado. Quase morro!




Estrepsíades

Não estou compreendendo. Quem te deve?



Aminias

Teu filho, Feidipides. O dinheiro

Que pediu emprestado em minha mão.



Estrepsíades

Tens razão. Realmente tu te encontras

Em pavoroso estado. Nem entendo.



Aminias

Mas eu entendo bem. Fui atirado,

Quando a caminho estava desta casa,

Pra fora do meu carro. Brutalmente

Atirado bem longe. Coisa horrível.



Estrepsíades

Agora compreendo. Então, foi isso.

Deves ter te ferido na cabeça.

Isso explica a conversa sobre a dívida.



Aminias

O que queres dizer com isso? Explica.



Estrepsíades

É evidente: um caso de delírio.

Machucou os miolos certamente.



Aminias

Machuquei os miolos?



Estrepsíades

Não há dúvida.

Provavelmente ficarás excêntrico

Para o resto da vida. Assim eu penso.



Aminias

Me paga o meu dinheiro! Assim eu penso.



Estrepsíades

Pensas assim? É mesmo? Pois então,

Eu quero te fazer uma pergunta.

Tenho curiosidade de saber

Qual é a teoria que preferes

Para explicar as quedas pluviais.

Tu achas que o fenômeno das chuvas

Por precipitação melhor se explica

De água fresca, totalmente nova,

Ou, ao contrário, de água já usada


Em chuva anterior e renovada

Em contínuo vaivém de sobe e desce.

Devagar condensada pelas Nuvens

Depois precipitada novamente?



Aminias

Não acho coisa alguma. Que importa

Saber se a água sobe e a água desce?



Estrepsíades

Não te importas? É mesmo? Muito bem.

E um ignorantão igual a ti,

Que não sabe os segredos da ciência,

Ter a ousadia de cobrar de mim,

Homem letrado e sapiente. É boa!



Aminias

Escuta aqui. Se por acaso estás

Desprevenido hoje e não puderes

Fazer o pagamento, eu cobro os juros.



Estrepsíades

Juros? O que entendes tu por juros?



Aminias

Os juros não são mais do que a tendência

Natural do dinheiro aplicado

De se reproduzir, com a passagem

Do tempo. E assim é mais do que claro

Que os juros crescem, o capital aumenta.



Estrepsíades

Quer dizer que, na tua opinião,

Há mais água no mar atualmente

Que no ano Passado. Não é isso?



Aminias

É claro que não é. Seria contra

As Leis da Natureza.



Estrepsíades

Então explica-me,

Ignóbil bastardo, se o mar,

No qual todos os rios desembocam,

Não cresce nem um pouco, como queres

Que o dinheiro é que cresça? Responde-me.

Não respondes? Pois trata de sumir

Sem demora de frente dos meus olhos.



(Aminias continua onde está, e Estrepsíades grita para o escravo)




Traze o chicote! Logo!



(O escravo obedece, e Estrepsíades estala o chicote, ameaçando Aminias)



Aminias (apavorado, dirigindo-se ao público)

Meus senhores,

Sois minhas testemunhas, meus senhores!



Estrepsíades

Ainda estás aí? Toma, tratante!



(Dá uma chicotada em Aminias.)



Vai-te embora, depressa! Vai-te embora!



(Dá uma outra chicotada em Aminias, desta vez no traseiro.)



Acertei bem em cheio!



Aminias

Se acertou!



Estrepsíades (mostrando o pênis)

Estás querendo mais no teu traseiro?



(Apavorado Aminias sai para fora do palco.)



Sumiste? Grande coisa! Boa coisa!

Estou livre de ti por toda a vida!



(Estrepsíades torna a entrar em casa, para continuar a jantar, em companhia
de Feidipides.)



Coro (individualmente)

Eis a falta de escrúpulo e vergonha,

Eis o que é a fatal fascinação:

Esse velho caduco e fraudulento,

Pela ganância sórdida empurrado,

Pra livrar-se das dívidas (e bem

Só aparentemente, sucedido)

Não vai perder por esperar. Bem cedo

Esse pobre discípulo de Sócrates

Vai aprender uma lição que é esta:

O crime não compensa. O desonesto

Acaba castigado. Estrepsíades

Pode pensar que está vitorioso,

Mas na verdade está muito enganado.

Ele acha que seu filho Feidipides,

Como sofista e falastrão vazio


Se tornou invencível. Ledo engano!

Esperai, e verei chegar um dia...



(Estrepsíades aparece, contorcendo-se de dor.)



Na verdade esse dia já chegou...

Em que desanimado, Estrepsíades

Desejará que o filho fosse mudo.



(Dando um grito de dor e de terror, Estrepsíades pula para fora de casa,
perseguido de perto por Feidipides, que empunha um mortífero bastão.)



Estrepsíades

Ai! Ai! Socorro! Ai! Ai! Ai! Em nome

Dos deuses, me ajudai!



(Dirigindo-se ao público)



Oh! Meus senhores!

Amigos! Conterrâneos! Tios! Tias!

Pais, irmãos e parentes, socorrei-me!

Ele está me batendo! Ai! Ai! Que dor!

Minha cabeça como está doendo!



(A Feidipides)



Espancas o teu próprio genitor?



Feidipides

E com o maior prazer, meu caro pai.



Estrepsíades

Estais ouvindo? O bruto até confessa!



Feidipides

Não só confesso, mas também proclamo.



Estrepsíades

Malfeitor ordinário! Filho ingrato!

Bastardo!



Feidipides

Agora estás me elogiando!



Estrepsíades

Bate em teu próprio pai!



Feidipides

Com muito gosto.

E acho que foi muito merecido.


Tenho uma boa justificativa.



Estrepsíades

Que justificativa pode haver

Para um filho espancar o próprio pai?



Feidipides

Aceitarás uma demonstração

Da Lógica nos princípios baseada?



Estrepsíades

Uma demonstração? Estás dizendo

Que és capaz de provar segundo a Lógica

Um fato tão chocante?



Feidipides

Exatamente.

E mais: tu podes escolher a Lógica:

A Lógica socrática ou pré-socrática.

À tua escolha.



Estrepsíades

Filho desalmado!

Sabe quem custeou os teus estudos?

Fui eu, tão somente, filho ingrato!

E tu queres agora convencer-me

Que é de todo lógico o fato

De um pai ser espancado pelo filho.



Feidipides

Posso provar, irrefutavelmente.



Estrepsíades

Gostaria de ouvir! Duvido muito!



Coro

Cuidado, meu amigo,

Nessa competição

Corres perigo.



Agora a coisa é tal

Que as chances todas são

De teu rival.



Eu te desejo sorte

Para o derrotar.

Ele é bem forte.

Vais precisar.



Corifaios (a Estrepsíades)


E agora, senhor, eu gostaria

Que esclareças o coro começando

A nos contar teu insucessozinho

Desde que começou.



Estrepsíades

Às vossas ordens.

Tudo foi feio de princípio ao fim.

Como sabeis nós dois nos reunimos

Para comemorar. Nossos costumes

Devem ser respeitados. Não há nada

Melhor do que uma música pra festa

Alegrar. E assim sendo eu lhe pedi

Para pegar a lira, e uma canção

Entoar, pois seria um bom começo:

Por exemplo, “A Tosquia do Carneiro”

De Simonides, ou outra semelhante.

Sabe o que respondeu o malcriado?

Que cantar no jantar era antiquado,

Obsoleto, tolo, desusado,

Só pelos velhos inda tolerado.



Feidipides

Tu tiveste o que muito merecias.

Ora essa! Querendo que eu cantasse

De barriga vazia! Era demais!



Estrepsíades

Pois foi assim. Negou-se e começou

A zombar do meu gosto e de mim mesmo.

Tentei conter a raiva, simplesmente,

E contei até dez, pra não brigar.

Pedi-lhe, então, depois, que me cantasse

Qualquer coisa de Ésquilo, e o grosseirão

Me respondeu que considera Ésquilo

“Poeta de estatura colossal”.

Sim. “O mais colossal, pretencioso,

Pomposo, palavroso e bombástico

Sensaborão da história da poesia”.

E tive tanta raiva que custei

A me conter, poré, rilhando os dentes,

Consegui esboçar leve sorriso

E lhe dizer: “Pois muito bem, meu filho.

Canta-me algo de uma dessas peças

Que estão na moda e que de tanto gostas.”

Ele então recitou... O quê? Eurípedes!

Uma dessas tragédias pegajosas

Onde há, nada mais, nem nada menos,

Um irmão que atarraxa a própria irmã!

Foi demais, foi demais, senhoras minhas!


Levantei-me de um pulo, ébrio de raiva,

E não pude deixar de injuriá-lo

Em altos brados, e ele, de seu lado

Insultou-me também e, mais que isso,

Espancou-me. Espancou o próprio pai!



Feidipides

E não era pra menos. Tu ousaste

Injuriar um gênio como Eurípedes!



Estrepsíades

Eurípdes um gênio!



(Feidipides ergue o bastão, ameaçadoramente.)



Ai! Ai! Socorro!

Ele vai me bater! Ai! Ai! Socorro!



Feidipides

Tu provocaste, pai!



Estrepsíades

Desnaturado!

Eu te criei com amor e com cuidado.

Quando eras bebê, eu te mimava.

Acompanhei os teus primeiros passos,

Dei-te a mão com carinho, te amparei,

Para depois de grande me espancares.

Ensinei-te a falar, com todo o empenho,

Para depois de grande me insultares.



Coro

Por favor, atenção!

Agora, Feidipides,

Tua demonstração.



É uma prova em questão

Que de certo compete

À nova geração.



Se este jovem então

Derrotar o seu pai

Valor não terá, não,



Nem um só ancião,

Nenhum representante

Da velha geração!



Corifaios

E agora, o Bravo Campeão da Troca,


O arguto Advogado do Futuro,

O Arauto do progresso: Feidipides!



(A Feidipides)



Lembra, senhor: queremos a verdade

Ou, pelo menos, algo parecido.



Feidipides

Senhores! A Eloqüência é coisa boa,

Muito melhor até do que esperava.

Oh! O arrebatamento do discurso!

Oh! A volúpia da articulação!

Mas sobretudo o ático prazer

De poder à vontade subverter

A ordem da Moral seguida e aceita!

Quando à lembrança me vêm hoje os dias

Inúteis e sombrios do passado,

Dias de pré-socrática loucura,

Quando o meu interesse eram os cavalos

E eu seria incapaz de pronunciar

Duas palavras gregas sem dizer

Um solecismo alvar, então, eu sinto...

Eu sinto... Eu sinto... Faltam-me as palavras.

Hoje, porém, que Sócrates de mim

Fez outro homem, um novo Feidipides,

Que se alimenta de Filosofia,

Ciência, Sutileza e Profundez,

Encontro-me em perfeitas condições

De demonstrar irrefutavelmente

A total conveniência filosófica

De espancar o meu pai.



Estrepsíades

Por Zeus, meu filho,

Aos malditos cavalos volta logo.

Prefiro uma cocheira a uma paulada.



Feidipides

Por óbvios motivos não tomando

Em consideração a pueril

Intervenção, eu continuo assim

Minha demonstração. Responde agora:

Quando eu era pequeno me bateste?



Estrepsíades

É claro. Eu tinha de te educar.

Bati porque te amava.



Feidipides


Muito bem.

Uma vez que tu mesmo reconheces

A sinonímia de espancar e amar,

É mais do que natural que eu, agora,

Por minha vez, com muito amor, te espanque.

Mais que isso, aliás: com que direito

Tu podes me espancar e pretenderes

Que eu não possa fazer a mesma coisa.

O que pensa que sou? Que sou escravo?

Não nasci, como tu, um homem livre?

Que me dizes, então?



Estrepsíades

Mas...



Feidipides

Mas o quê?

“Poupas a vara e estragas a criança”?

este é o teu argumento? Pois, se for

Eu posso responder com outro ditado:

“Os velhos são crianças que cresceram”.

É lógico, portanto, que os velhos

Merecem muito mais ser espancados,

Porquanto, experientes como são,

São menos desculpáveis que as crianças.



Estrepsíades

Mas não é natural! É ilegal!

Honrarás pai e mãe. Tal é a lei.



Feidipides

E quem fez essa lei? Um homem igual

A mim, a ti, um homem igual a nós.

Um homem que lutou por seu projeto

Até poder persuadir o povo

Que o transformasse em lei. Somente isso.

Pelo mesmo motivo, o que me impede

De uma lei nova apresentar, mandando

Que os pais sejam espancados pelos filhos?

Não seria vingança, é evidente.

Estou mesmo inclinado a sugerir

Uma anistia que retroagisse

Favorecendo os pais, e garantindo

Uma compensação pelas pancadas

Que, por acaso, houvessem recebido

Antes que fosse promulgada a lei.

Se, apesar disso tudo, não estás

Ainda convencido, todavia,

Argumento com a própria Natureza.

Por exemplo: observa como os galos


Se comportam entre si. Vivem brigando

Filhos com pais, sem vãs hierarquias.

E em que a sociedade galinácea

Se difere da nossa: tão somente

Porque a nossa tem leis e ela não.



Estrepsíades

Se estás disposto a imitar os galos,

Por que não vais, então, comer titica

E dormir no poleiro?



Feidipides

Ora! Porque...

Porque não há no caso analogia.

Se duvidas de mim, pergunta a Sócrates.



Estrepsíades

Deixa os galos pra lá. Mas te aconselho

A não bateres mais em mim, pois isso

Vai acabar é te prejudicando.



Feidipides

Prejudicando-me? Eu duvido.



Estrepsíades

Então,

Presta atenção no que estou te dizendo:

Quando eras menino eu te bati.

Mas um dia terás, também um filho,

Nele descontarás o que tiveste.

Se, porém, me bateres, o teu filho

Naturalmente seguirá o exemplo

E contigo fará o que me fazes.



Feidipides

E se eu não tiver filho? Nesse caso

Eu ficarei privado de bater

Em qualquer um. E agora, o que me dizes?



(Há um silêncio prolongado, pois o argumento causou profunda impressão em
Estrepsíades.)



Estrepsíades

Tenho de confessar que tens razão.



(Para o público.)



Falando para a geração mais velha,

Sou obrigado a confessar, senhores,

Derrotado saí. Meu douto filho


Conseguiu demonstrar a sua tese:

Deve ser espancado o pai faltoso.



Feidipides

Naturalmente. Eu ia me esquecendo,

De uma questão final, muito importante.



Estrepsíades

Qual é? O funeral?



Feidipides

Muito ao contrário.

Eu acho até que vais ficar contente.



Estrepsíades

Mais do que já estou? Acho difícil...



Feidipides

Segundo dizem, “O sofrimento gosta

De companhia”. E terás, meu pai.

Em tua desventura, companhia.

Vou espancar também minha mãezinha.



Estrepsíades

Bater em tua mãe?! Isso é pior,

Dez mil vezes pior!



Feidipides

Tu achas mesmo?

E se eu provar, por Lógica socrática,

Isso também, então o que dirias?



Estrepsíades

O que eu diria? Digo agora mesmo:

Se tal coisa provares, eu permito

Que juntes tua Lógica nojenta,

E o teu Pensamental e dentro Sócrates,

E enfie tudo no lugar devido!



(Dirigindo-se ao Coro)



Ó Nuvens, fostes vós que me arrastastes

A esta situação em que me encontro.

Ser assim enganado! Mentirosas!



Corifaios

Foste tu o culpado, Estrepsíades.

O único culpado foste tu.

Não foi feita por nós a tua escolha,

Porém por tua própria improbidade.




Estrepsíades

Por que, então, em vez de aconselhardes

Um pobre ignorante a se afastar

Do mal, muito ao contrário, o incitastes?



Corifaios

Porque é assim mesmo que nós somos:

Insubstanciais nuvens onde o homem

Constrói as suas frágeis esperanças,

Brilhantes, tentadoras, mas formadas

De puro ar, miragens do desejo.

E assim agimos nós, indiferentes.

Seduzindo e atraindo os homens vãos

Nos desonestos sonhos da ambição

Que, como sonhos, logo se desfazem.

E o sofrimento lhes ensina então

A respeitar os deuses, e a temê-los.



Estrepsíades

Não vou elogiar o vosso método,

Mas fiz mal em lograr os meus credores,

Eu confesso que fiz.



(A Feidipides)



E tu, meu filho?

Vamos vingar de Cairefonte e Sócrates

Por nos ludibriarem? Vens comigo?



Feidipides

Achas mesmo que posso te ajudar

Contra o meu Mestre de Filosofia?

De modo algum?



Estrepsíades

Respeita um pouco Zeus.



Feidipides

Que Zeus, que nada! Acreditar em Zeus!

É prova de burrice consumada!



Estrepsíades

É claro que há Zeus.



Feidipides

Claro por quê?

Agora no poder está o Princípio

Da Convecção. E Zeus foi deportado.




Estrepsíades

É mentira! Mentira deslavada.

Toda essa história de Convecção

Me foi contada no Pensamental

Fizeram-me lavagem cerebral

Completa e até mesmo mo ensinaram

Que o universo é uma espécie de fogão,



(Apontando para o modelo em frente ao Pensamental.)



Como aquele modelo, um fogo cósmico,

E que os deuses não passam de um gás quente

Girando em turbilhão. E me iludiram

E engoli tudo: a isca, o anzol e a linha.



Feidipides

Pois isso é lá contigo. Eu vou-me embora.



(Sai Feidipides.)



Estrepsíades

Ó asno, ó toleirão desmiolado,

Ó imbecil que fui, deixando os deuses,

Para seguir a Sócrates! Cretino!



(Pega o bastão de Feidipides e furiosamente despedaça o modelo de universo
em forma de fogão, em frente ao Pensamental. Depois, corre em direção à sua
própria casa e cai de joelhos diante da estátua de Hermes.)



Grande Hermes, te imploro, grande Hermes:

Esquece a justa ira e compadece

Deste desventurado que te implora!

Compadece de mim, dá-me um conselho.

Achas que eu devo demandar, ou não?



(Encosta o ouvido junto à boca do deus, como se estivesse ouvindo um
conselho sussurrado.)



O quê?... Hum... Hum... Sei... Hum... Não demandar.

Pode continuar!... É mesmo?... É mesmo?

Eu sei... Por fogo no Pensamental...

Com a fumaça expulsar os charlatões...

Incinerar as falsificações!

Vou fazer! Vou fazer! Muito obrigado!



(Grita para o seu escravo)



Vem cá depressa, Xântias, com uma escada

E com um machado! Bem depressa!




(Xântias corre trazendo uma escada e um machado.)



Agora

Sobe ao telhado do Pensamental

E tira algumas telhas, descobrindo

O teto embaixo. Vamos! Bem depressa!



(Xântias encosta a escada na parede do Pensamental, sobe e começa a
destelhá-lo, com ajuda do machado.)



Depressa, agora traze-me uma tocha!



(Outro escravo chega correndo com uma tocha acesa.)



Ó deuses! Vou queimar esses tratantes

Pra pagar o que comigo fizeram,

Ou meu nome não é Estrepsíades!



(Sobe na escada até o telhado, e, furioso, põe fogo nos barrotes e traves di
telhado com a tocha, enquanto Xântias levanta as telhas com o machado. A
fumaça se espalha em nuvens, e todo o telhado parece estar em chamas,
enquanto dentro do Pensamental se ouvem os primeiros sinais de alarme e
confusão.)



Primeiro Aluno (de dentro)

Fogo! Fogo! Socorro!



Estrepsíades

Vou torrá-los!



(Quando Xântias pára, para olhar o espetáculo, Estrepsíades lhe passa a
tocha, toma-lhe o machado e começa a dar machadadas nos barrotes,
freneticamente.)



Primeiro Aluno (sai correndo do Pensamental e olha para o telhado)

Patife, o que fizeste?



Estrepsíades

Estou apenas

A Lógica aplicando a este telhado.



Segundo Aluno (de dentro do prédio)

Quem foi que incendiou o nosso ninho?



Estrepsíades

Foi um homem sem manto.



Segundo Aluno (correndo para fora de casa)

Mas estou

Sendo queimado vivo!




Estrepsíades

E eu, então?

Tiritando de frio, quase morto!



Primeiro Aluno

Mas foi um incêndio criminoso! É claro!

Eu vou morrer!



Estrepsíades

Vai, sim. Exatamente

Aquilo que eu queria.



(Quase atinge a perna com uma machadada, e fica se balançando
perigosamente no telhado.)



Ui! Ui! Contanto

Que eu não caia daqui e quebre a espinha.



(Arquejando e tossindo desesperadamente, Sócrates sai do Pensamental,
seguido de perto por uma incrível procissão de Alunos, magros e pálidos como
defuntos, todos gritando de medo. Atrás de todos, cacarejando como dois galos
amedrontados, vêm Filosofia e Sofisma.)



Sócrates

O que é isso, patife, descarado?

O que fazes aí no meu telhado?



Estrepsíades

Estou andando no ar, e contemplando

O nosso Sol de cima para baixo.



Sócrates (sufocado pela fumaça e transtornado pela raiva.)

Atrevido! Safado! Eu... Eu... Ui! Ui!

Estou... Ui! Sufoca... Ui! Sufocado!



(Enquanto Sócrates cai, sufocado por um acesso de tosse, Estrepsíades e
Xântias descem a escada, vindos do telhado. Depois, Cairefonte, inteiramente
coberto de fuligem e cinza, e com o manto pegando fogo, sai do inferno
Pensamental.)



Cairefonte

Ai! O Pensamental virou um forno!

E eu virei cinza! Ai!



Estrepsíades (espancando-o com um bastão, enquanto Xântias chicoteia
Sócrates)

Quem te mandou

Os deuses blasfemar? Quem te mandou

Espionar a Lua lá no céu?




Corifaios

Vamos! Chibateai-os, espancai-os,

Pelos seus crimes, mas principalmente

Por se atreverem a blasfemar os deuses!



(Estrepsíades e seus escravos espancam Sócrates e seus seguidores, até que
todos os pensadores, seguidos por Filosofia e Sofisma, correm apavorados
para fora de cena. O Pensamental desaba, com grande barulho, transformado
em uma ruína em chamas.)



Coro

Agora, sem mais tardança,

Vamos sair, sem mais essa.

Acabou a nossa dança

E acabou também a peça.



(Vagarosa e majestosamente, o Coro se retira.)



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