sexta-feira, 28 de setembro de 2012

A obra prima ignorada - Honoré de Balzac

      A obra prima ignorada
      Honoré de Balzac
     
      A um lorde          
      ...........................
      ...........................
      ...........................
      1845     
     

Honoré de Balzac

      I
      Gilette
     
      Em fins de 1612, numa fria manhã de dezembro, um rapaz, cujo
vestuário era
      de modesta aparência, passeava em frente à porta de uma casa
situada na
      rue des Grands Augustiniens, em Paris. Depois de por muito tempo
caminhar

      por aquela rua com a irresolução de um amante que não ousa
apresentar-se
      em casa da sua primeira conquista, por mais fácil que ela tivesse
sido,
      acabou por transpor o umbral daquela porta e perguntou se mestre
Francisco
      Porbus estava em casa. Ante a resposta afirmativa que lhe foi dada
por uma
      velha entretida em varrer uma sala baixa, o jovem subiu agilmente
os
      degraus, detendo-se em cada um deles como um cortesão noviço,
inquieto
      pelo acolhimento que lhe faria o rei. Quando chegou ao alto da
escadaria
      de caracol, ficou um momento no patamar, hesitando se usaria ou não
a
      grotesca aldrava que ornamentava a porta da oficina onde devia
trabalhar o
      pintor de Henrique IV, ao qual Maria de Médicis preferiu Rubens. O
rapaz
      experimentava essa sensação profunda que deve ter feito vibrar o
coração
      dos grandes artistas quando, em pleno zênite da mocidade e do amor
pela
      arte, enfrentaram um homem de gênio ou alguma obra-prima. Existe em
todos
      os sentimentos humanos uma flor primitiva, engendrada por um nobre
      entusiasmo que vai continuamente enfraquecendo até que a felicidade
não
      seja mais do que uma lembrança e a glória uma mentira. Por entre
essas
      frágeis emoções, nada se assemelha tanto ao amor como a juvenil
paixão de
      um artista que inicia o delicioso suplício de seu destino de glória
e de
      infortúnio, paixão cheia de audácia e de timidez, de crenças vagas
e de
      desânimos positivos. Ao artista que, de poucos haveres, que,
adolescente
      de gênio, não palpitou vivamente ao apresentar-se diante de um
mestre,
      sempre faltará uma corda no coração, não sei que pincelada, que
sentimento
      na obra, que indefinível expressão de poesia. Se alguns fanfarrões,
cheios
      de si, crêem muito cedo no futuro, esses serão homens de espírito
somente
      para os néscios. A ser assim, o jovem desconhecido parecia ter
verdadeiro
      merecimento, se é que o talento deve medir-se por essa timidez
inicial,
      por esse pudor indefinível que os que são destinados à glória sabem
perder
      no exercício de sua arte, como as mulheres bonitas perdem o seu nos
      manejos da faceirice. O hábito do triunfo apequena a dúvida, e o
pudor é
      talvez uma dúvida.
      Deprimido pela miséria e surpreendido naquele momento por sua
petulância,
      o pobre neófito não teria entrado em casa do pintor a quem devemos
o
      admirável retrato de Henrique IV, sem um auxílio extraordinário que
o
      acaso lhe proporcionou. Um ancião vinha subindo a escada. Pela
      singularidade do seu traje, pela magnificência de seu cabeção de
renda,
      pela preponderante calma do seu andar, o rapaz adivinhou ser aquele
      personagem um protetor, ou amigo do pintor; recuou no patamar para
dar-lhe
      lugar e examinou-o com curiosidade, na esperança de achar nele a
boa
      índole de um artista ou o caráter serviçal das pessoas que amam a
arte;
      mas naquele rosto divisou alguma coisa de diabólico e, sobretudo,
esse não
      sei que que tanto atrai os artistas. Imaginem uma fronte calva,
abaulada,
      proeminente, projetando-se saliente sobre um nariz pequeno e chato,
      arrebitado na ponta como o de Rabelais ou o de Sócrates; uma boca
risonha
      e enrugada, um queixo curto, orgulhosamente erguido, tapado por uma
barba
      grisalha, aparada em ponta, olhos verde-mar embaciados na aparência
pela
      idade, mas que, pelo contraste do branco nacarado em que a pupila
      flutuava, deviam por vezes despedir olhares magnéticos no paroxismo
da
      cólera ou do entusiasmo. O rosto, aliás, estava singularmente
emurchecido
      pelas fadigas da idade e, mais ainda, por esses pensamentos que
corroem
      igualmente a alma e o corpo. Os olhos não tinham mais cílios, e mal
se
      viam vestígios de sobrancelhas por sobre as arcadas salientes.
Ponham essa
      cabeça num corpo franzino e débil, cerquem-na de uma renda de
deslumbrante
      alvura e perfurada como uma colher para peixe, atirem sobre o gibão
preto
      do ancião uma pesada corrente de ouro e terão uma imagem imperfeita
desse
      personagem, ao qual a escassa luz da escada acrescentava ainda uma
cor
      fantástica. Dir-se-ia uma tela de Rembrandt caminhando
silenciosamente, e
      sem o quadro, na escura atmosfera de que o grande pintor se
apropriou. O
      ancião dirigiu ao rapaz um olhar repassado de sagacidade, bateu
três
      pancadas na porta e disse a um homem valetudinário, de cerca de
quarenta
      anos, que veio abrir:
      - Bom dia, mestre.
      Porbus inclinou-se respeitosamente; deixou o rapaz entrar, por
julgá-lo
      trazido pelo ancião, e preocupou-se tanto menos com ele, por ter o
neófito
      permanecido sob o encantamento que devem experimentar os pintores
de
      vocação ante o aspecto do primeiro ateliê que vêem e onde se lhes
revelam
      alguns dos processos materiais da arte. Uma clarabóia existente no
teto
      iluminava o ateliê de Porbus. Concentrada sobre uma tela colocada
no
      cavalete e que não fora ainda tocada senão por três ou quatros
traços
      brancos, a luz não alcançava as negras profundezas dos cantos
daquela
      vasta peça; entretanto, alguns reflexos perdidos faziam brilhar
naquela
      sombra pardacenta uma paleta prateada no ventre de uma couraça de
retre
      suspensa na parede, listavam com um brusco sulco de luz a cornija
      esculpida e encerada de um antigo aparador coberto de louças
curiosas ou
      pontilhavam de pingos brilhantes o tecido granuloso de alguns
velhos
      reposteiros de brocado dourado, de grandes pregas desfeitas,
atirados ali
      como modelos. Manequins de gesso, fragmentos e bustos de deusas
antigas,
      amorosamente polidas pelos beijos dos séculos, enchiam as mesinhas
e os
      consolos. Numerosos esboços, estudos a lápis, a três cores,
sanguíneos ou
      feitos a pena, cobriam as paredes até o teto. Caixas de tintas,
garrafas
      de óleo e de essência, escabelos caídos não deixavam senão um
caminho
      estreito para chegar embaixo da auréola projetada pela clarabóia,
cujos
      raios caíam em cheio no pálido semblante de Porbus e sobre o crânio
de
      marfim do homem singular. A atenção do rapaz foi logo
exclusivamente
      solicitada por um quadro que, naquele tempo de motins e de
revoluções, já
      se tornara célebre, e que era visitado por alguns desses teimosos
aos
      quais se deve a conservação do fogo sagrado durante os dias maus.
Aquela
      bela página representava uma Maria Egipcíaca que se dispunha a
pagar a
      passagem da barca. Essa obra-prima, destinada a Maria de Médicis,
foi por
      ela vendida nos dias de sua miséria.
      - Tua santa me agrada disse o ancião a Porbus - e eu te daria por
ela dez
      escudos de ouro acima do preço que a rainha oferece; mas competir
com
      ela... é o diabo!
      - Acha-a bem?
      - Hum! hum! fez o ancião - bem?... sim e não. Essa tua mulherzinha
não
      está mal-arranjada, mas não tem vida. Vocês pensam ter feito tudo
quando
      desenharam corretamente uma figura e puseram corretamente cada
coisa em
      seu lugar segundo as leis da anatomia! Vocês cobrem esse esboço com
      tonalidades de carne de antemão preparadas na paleta, tendo o
cuidado de
      manter um dos lados mais sombrio do que o outro, e, como olham de
quando
      em quando uma mulher nua que se conserva de pé em cima de uma mesa,
julgam
      ter copiado a natureza; imaginam que são pintores e que roubaram o
segredo
      de Deus!... Prrr! Não basta para ser um grande poeta conhecer a
fundo a
      sintaxe e não cometer erros de linguagem! Olha tua santa, Porbus! À
      primeira vista ela parece admirável; mas a um segundo exame vê-se
que está
      colada no fundo da tela e que não seria possível dar uma volta em
torno do
      seu corpo. É uma silhueta que só tem uma face, é uma aparência
recortada,
      uma imagem incapaz de se virar, de mudar de posição. Não sinto ar
entre
      esse braço e o fundo do quadro; faltam espaço e profundidade:
entretanto,
      em perspectiva tudo está bem e a degradação aérea está exatamente
      observada; mas, apesar de tão louváveis esforços, eu não poderia
crer que
      esse belo corpo esteja animado pelo morno sopro da vida. Parece-me
que, se
      eu colocasse a mão naquele colo de carnes firmes e harmoniosas, eu
o
      acharia frio como mármore. Não, meu amigo, o sangue não corre por
baixo
      daquela pele de marfim, a vida não intumesce com seu orvalho
purpúreo as
      veias e as fibrilas que se entrelaçam em redes sob a transparência
de
      âmbar das têmporas e do peito. Este lugar palpita, mas aquele outro
está
      imóvel, em cada pormenor a vida e a morte lutam: aqui é uma mulher,
ali é
      uma estátua, mais além é um cadáver. Tua criação é incompleta. Não
pudeste
      transmitir senão uma parte de tua alma à tua obra querida. O facho
de
      Prometeu mais de uma vez se apagou nas tuas mãos e muitos lugares
do teu
      quadro não foram tocados pela chama celeste.
      - Mas por quê, meu caro mestre? - disse respeitosamente Porbus ao
ancião,
      enquanto o rapaz dificilmente reprimia um forte desejo de sová-lo.
      - Ah! aí está! - respondeu o velhinho. - Flutuaste indeciso entre
os dois
      sistemas, entre o desenho e a cor, entre a fleuma minuciosa, a
rigidez
      precisa dos velhos mestres alemães e o ardor deslumbrante, a feliz
      abundância dos pintores italianos. Quiseste imitar ao mesmo tempo
Hans
      Holbein e Ticiano, Albrecht Dürer e Paolo Veronese. Evidentemente,
era
      isso uma ambição magnífica! Mas que aconteceu? Não alcançaste nem a
      sedução severa da secura nem as decepcionantes magias do claro-
escuro.
      Neste lugar, como um bronze em fusão que arrebenta seu molde fraco
demais,
      a rica e loura cor do Ticiano fez romper-se o magro contorno de
Albrecht
      Dürer, em que o tinhas moldado. Além, o desenho resistiu aos
magníficos
      transborda
      mentos da paleta veneziana e os conteve. Tua figura não está nem
      perfeitamente desenhada nem perfeitamente pintada, e mostra em toda
parte
      os vestígios dessa infeliz indecisão. Se não te sentias
suficientemente
      forte para fundir juntos ao fogo do teu gênio as duas maneiras
rivais,
      devias ter optado francamente por uma ou outra, a fim de obter a
unidade
      que simula uma das condições da vida. Tu não és verdadeiro senão
nos
      centros, teus contornos são falsos, não se envolvem e nada prometem
por
      detrás. Aqui há verdade - disse o ancião, mostrando o peito da
santa. - E
      também aqui - continuou ele indicando o ponto em que, no quadro,
terminava
      o ombro. - Mas ali - acrescentou, voltando ao centro do colo - tudo
é
      falso. Não analisemos nada, que isso seria desesperar-te.
      O ancião sentou-se numa banqueta, segurou a cabeça com as mãos e
ficou
      calado.
      Mestre - disse-lhe Porbus - entretanto estudei bem o nu deste colo;
mas,
      por infelicidade nossa, existem efeitos verdadeiros na natureza que
na
      tela não são mais prováveis...
      - A missão da arte não é copiar a natureza e sim exprimi-la! Não és
um vil
      copista, e sim um poeta! - exclamou vivamente o ancião, inter -
rompendo
      Porbus com um gesto despótico. - De outra forma, um escultor
estaria quite
      com todos os seus trabalhos modelando uma mulher! Pois bem,
experimenta
      modelar a mão de tua amante e a colocar diante de ti; depararás com
um
      horrível cadáver, sem nenhuma parecença, e serás forçado a ir em
busca do
      escopro do homem que, sem copiá-la exatamente, nela representará o
      movimento e a vida. Temos de apreender o espírito, a alma, a
fisionomia
      das coisas e dosseres. Os efeitos! os efeitos! mas se eles são os
      acidentes da vida e não a vida! Uma mão, já que recorri a esse
exemplo,
      uma mão não está unicamente presa ao corpo, ela exprime e continua
um
      pensamento que é preciso apreender e reproduzir. Nem o pintor nem o
poeta
      nem o escultor devem separar o efeito da causa, que invencivelmente
estão
      um no outro. A verdadeira luta está aí! Muitos pintores triunfam
      instintivamente sem conhecer esse tema da arte. Vocês desenham uma
mulher,
      mas não a vêem! Não é assim que se consegue forçar o arcano da
natureza.
      As mãos de vocês reproduzem, sem que se dêem conta, o modelo que
copiaram
      na oficina do mestre. Vocês não descem suficientemente na
intimidade da
      forma, não a perseguem com suficiente amor e perseverança nos seus
desvios
      e nas suas fugas. A beleza é uma coisa severa e difícil que não se
deixa
      alcançar à vontade, é preciso esperar suas horas, espioná-la,
acossá-la e
      enlaçá-la firmemente para obrigá-la render-se. A Forma é um Proteu
muito
      mais inatingível e mais fértil em sinuosidades do que o Proteu da
Fábula;
      não é senão depois de demorados combates que se pode constrangê-la
a
      mostrar-se sob seu verdadeiro aspecto. Vocês contentam-se com a
primeira
      aparência que ela lhes entrega, ou quando muito com a segunda, ou
com a
      terceira; não é assim que procedem os lutadores vitoriosos! Esses
pintores
      jamais vencidos não se deixam ludibriar por esses mais-ou-menos,
      perseveram até que a natureza se veja reduzida a mostrar-se
inteiramente
      nua, e no seu verdadeiro espírito. Assim procedeu Rafael - disse o
ancião,
      tirando seu boné de veludo preto para exprimir o respeito que lhe
      inspirava o rei da arte - sua grande superioridade provém do
sentido
      íntimo que, nele, parece querer despedaçar a forma. A forma,nas
suas
      figuras, é o mesmo que entre nós, um intérprete para comunicar
idéias,
      sensações, uma vasta poesia. Toda imagem é um mundo, um retrato
cujo
      modelo surgiu numa visão sublime, colorido de luz, designado por
uma voz
      interior, despido por um dedo celestial que mostrou, no passado de
toda
      uma vida, as fontes da expressão. Vocês fazem nas suas mulheres
belos
      vestidos de carne, belos cortinados de cabelos, mas onde o sangue
que
      engendra a calma ou a paixão e que causa efeitos particulares? Tua
santa é
      uma mulher morena, mas isto aqui, meu pobre Porbus, é de uma loura!
As
      figuras de vocês são então pálidos fantasmas coloridos que vocês
nos
      passeiam diante dos olhos, e chamam a isso pintura e arte! Pelo
fato de
      terem feito alguma coisa que se assemelha mais a uma mulher do que
a uma
      casa, vocês pensam ter alcançado o alvo e, muito ufanos por não
serem mais
      obrigados a escrever ao lado de suas figuras, currus venustus ou
pulcher
      homo, como os primeiros pintores, vocês julgam ser artistas
maravilhosos!
      Ah! ah! ainda não alcançaram o alvo, meus denodados companheiros;
terão
      ainda de gastar muitos lápis, borrar muitas telas antes de tal
conseguir!
      Não há dúvida de que uma mulher traz a cabeça desse modo, ela
segura a
      saia assim, seus olhos se enlanguescem e se fundem nesse ar de
doçura
      resignada, a sombra palpitante dos cílios flutua desse modo sobre
as
      faces! É isso e não é isso. Que falta, pois? um nada, mas esse nada
é
      tudo. Vocês dão a aparência da vida mas não exprimem seu excesso
que
      transborda, esse não sei que que é a alma, talvez, e que flutua
      nebulosamente sobre o invólucro; enfim, essa flor de vida que
Ticiano e
      Rafael surpreenderam. Partindo-se do ponto extremo a que vocês
chegaram,
      far-se-ia, talvez, excelente pintura; mas vocês se cansam muito
depressa.
      O vulgo admira, mas o verdadeiro conhecedor sorri. Ó Mabuse, ó meu
mestre
      - acrescentou aquele singular personagem - és um ladrão, levaste a
vida
      contigo! Feitas essas restrições - prosseguiu - esta tela vale mais
do que
      as pinturas desse mariola de Rubens, com as suas montanhas de
carnes
      flamengas, polvilhadas de vermelhão, com suas bátegas de cabeleiras
      castanhas e sua orgia de cores. Pelo menos você tem aí cor,
sentimento e
      desenho, as três partes essenciais da arte.
      - Mas essa santa é sublime, velhote! - exclamou o rapaz com voz
forte, ao
      sair de demorado devaneio. - Essas duas figuras, a da santa e a do
      barqueiro, têm uma finura de intenção que os pintores italianos
ignoravam;
      não conheço um único que tivesse inventado a indecisão do
barqueiro.
      - Esse maroto é seu? - perguntou Porbus ao ancião.
      - Ai de mim! mestre, perdoe o meu atrevimento - respondeu o
neófito,
      corando. - Sou desconhecido, um pintamonos instintivo, e chegado
faz pouco
      a esta cidade, fonte de toda ciência.
      - Mãos à obra! - retrucou-lhe Porbus apresentando-lhe um lápis
vermelho e
      uma folha de papel.
      O desconhecido copiou celeremente a Maria em poucos traços.
      - Oh! oh! - exclamou o ancião. - Como se chama?
      O rapaz escreveu por baixo: Nicolas Poussin.
      - Eis aqui algo que não está mal para um principiante - afirmou a
singular
      personagem que tão aloucadarnente discorria. - Vejo que se pode
falar em
      pintura diante de ti. Não te censuro por teres admirado a santa de
Porbus.
      Para todos é uma obra-prima, e somente os iniciados nos mais
profundos
      arcanos da arte podem descobrir no que ela peca. Uma vez, porém,
que és
      digno da lição e capaz de compreender, vou fazer-te ver o pouco que
seria
      preciso para completar a obra. Abre bem os olhos e presta toda a
atenção,
      pois semelhante ocasião de te instruíres não tornará jamais,
talvez, a se
      apresentar. Tua paleta, Porbus!
      Porbus foi buscar a paleta e os pincéis. O velhinho arregaçou as
mangas
      com um gesto de rudeza convulsa, passou o polegar na paleta
matizada e
      cheia das tintas que Porbus lhe oferecia; arrancou-lhe das mãos,
mais do
      que o recebeu, um punhado de pincéis de todos os tamanhos, e sua
barba,
      aparada em ponta, moveu se subitamente por esforços ameaçadores que
      exprimiam o prurido de uma apaixonada fantasia. Ao mesmo tempo que
enchia
      o pincel de tinta, resmungava entre dentes:
      "Estas cores só prestam para ser atiradas pela janela, junto com o
que as
      misturou: são de uma crueza e de uma falsidade revoltantes! Como se
poderá
      pintar com isso?"
      Molhava depois com febril vivacidade a ponta do pincel nas várias
cores,
      das quais percorria por vezes toda a escala mais rapidamente do que
um
      organista de catedral percorre a extensão de seu teclado no O filii
da
      Páscoa.
      Porbus e Poussin permaneciam imóveis, cada um deles a um lado da
tela,
      mergulhados na mais veemente contemplação.
      - Vês, rapaz - ia dizendo o velho, sem se voltar - vês como por
meio de
      três ou quatro pinceladas e de uns toques azulados se podia fazer o
ar
      circular à roda da cabeça desta pobre santa, que devia estar
sufocada e
      sentir-se presa nessa atmosfera densa! Olha como esta fazenda
revoluteia
      agora e como se compreende que a brisa a soergue! Antes tinha o
aspecto de
      uma tela engomada e presa com alfinetes. Estás notando como o
brilho
      acetinado que acabo de depor no peito reproduz bem a fofa
flexibilidade de
      uma pele de moça, e como o tom misturado de pardo-avermelhado e de
ocre
      calcinado aquece a grísea frieza desta grande sombra na qual o
sangue se
      coagulava em vez de circular? Rapaz, rapaz, o que aqui te estou
mostrando
      nenhum mestre poderia ensinar-te. Somente Mabuse possuía o segredo
de dar
      vida às figuras. Mabuse teve somente um discípulo, e esse sou eu.
Eu não
      tive nenhum, e estou velho! Tens suficiente inteligência para
adivinhar o
      resto, por isto que te estou deixando entrever.
      Ao mesmo tempo que falava, o estranho ancião tocava em todos os
pontos do
      quadro: aqui duas pinceladas, ali uma única, mas sempre tão a
propósito
      que se diria uma nova pintura, mas uma pintura banhada de luz.
Trabalhava
      com um ardor tão apaixonado que o suor gotejou na sua fronte calva;
ia tão
      rapidamente com pequenos movimentos tão impacientes, tão
entrecortados
      que, para o jovem Poussin, parecia haver no corpo daquela singular
      personagem um demônio que atuava por suas mãos, tomando-as
fantasticamente
      contra a vontade do homem. O brilho sobrenatural de seus olhos, as
      convulsões que pareciam o efeito de uma resistência davam àquela
idéia um
      simulacro de verdade que devia atuar sobre uma imaginação moça. O
ancião
      continuava dizendo:
      - Paf! paf! paf! eis aqui como isto se lambuza, rapaz! Venham,
minhas
      pinceladinhas, façam-me crestar este tom glacial! Vamos! Pon! pon!
pon! -
      murmurava, dando calor às partes onde se assinalara uma falta de
vida,
      fazendo desaparecer por meio de algumas placas de tinta as
diferenças de
      temperamento, e restabelecendo a uniformidade de tom exigida por
uma
      ardente egípcia.
      - Vês, meu filho, o que vale é a última pincelada. Porbus deu cem;
eu dou
      uma somente. Ninguém nos agradece o que está embaixo. Fique sabendo
isso
      bem!
      Finalmente, aquele demônio se deteve, e, virando-se para o Porbus e
      Poussin, mudos de admiração, disse-lhes:
      - Isto não vale ainda a minha Belle Noiseuse; entretanto, podia-se
assinar
      o nome ao pé de semelhante obra. Sim, eu a assinaria - acrescentou,
      erguendo-se para pegar um espelho, no qual olhou-a. - Agora, vamos
almoçar
      - disse ele. - Venham os dois à minha casa. Tenho presunto defumado
e bom
      vinho!... Eh! eh! apesar dos tempos desgraçados, falaremos de
pintura!
      Somos de força... Aqui está um homenzinho - acrescentou, dando uma
palmada
      no ombro de Nicolas Poussin - que tem facilidades.
      Ao ver então o casaco ordinário do normando, tirou do cinturão uma
bolsa
      de couro, meteu os dedos nela, de lá trouxe duas moedas de ouro e,
      mostrando-lhas:
      - Compro o teu desenho disse ele.
      - Aceita - aconselhou Porbus a Poussin, ao vê-lo estremecer e corar
de
      vergonha, porquanto o jovem adepto tinha o orgulho do pobre. -
Aceita de
      uma vez, pois que na sua sacola ele tem o resgate de dois reis.
      Os três desceram a escada da oficina e caminharam charlando a
respeito de
      arte, até chegarem a uma bela casa de madeira situada perto da
ponte de
      São Miguel, e cujos ornamentos, a aldraba, os caixilhos das
janelas, os
      arabescos, maravilharam Poussin. O aspirante a pintor viu-se
      repentinamente numa sala baixa, diante de um bom fogo, junto a uma
mesa
      servida de manjares apetitosos, e, por uma felicidade inaudita, na
      companhia de dois grandes artistas cheios de bonomia.
      - Jovem - disse-lhe Porbus, ao vê-lo pasmado em frente a um quadro
- não
      olhe muito essa tela, pois ficaria desesperado
      Era o Adam, que Mabuse fez para sair da prisão na qual seus
credores o
      retiveram durante muito tempo. Aquela figura apresentava,
efetivamente, um
      tal poder de realidade que Nicolas Poussin começou, desde aquele
momento,
      a compreender o verdadeiro sentido das confusas palavras do ancião.
Este
      contemplava o quadro com ar satisfeito, mas sem entusiasmo,
parecendo
      dizer: "Fiz coisa melhor!"
      - Há vida aí - comentou - ; meu pobre mestre sobrepujou-se; falta,
porém,
      ainda um pouco de verdade no fundo da tela. O homem está bem vivo,
vai
      levantar-se e dirigir-se para nós. Mas o ar, o céu, o vento que
      respiramos, vemos e sentimos não estão aí. Ademais, não há aí mais
do que
      um homem! Ora, o único homem saído diretamente das mãos de Deus
devia ter
      algo de divino, que falta. O próprio Mabuse, quando não estava
ébrio,
      dizia isso cheio de despeito.
      Poussin olhava alternativamente para o ancião e para Porbus com uma
      curiosidade inquieta. Aproximou-se deste como para perguntar-lhe o
nome do
      anfitrião; o pintor, porém, pôs um dedo nos lábios com ar de
mistério, e o
      rapaz, vivamente interessado, calou-se, esperando que cedo ou tarde
alguma
      palavra lhe permitiria adivinhar o nome do seu hospedeiro, cuja
riqueza e
      talentos eram suficientemente atestados pelo respeito que Porbus
lhe
      testemunhava e pelas maravilhas acumuladas naquela sala. Poussin,
ao ver
      no sombrio forro de madeira de carvalho um magnífico retrato de
mulher,
      exclamou:
      - Que belo Giorgione!
      - Não - replicou o ancião - está vendo uma das minhas primeiras
lambuzadas.
      - Demônios! estou então em casa do deus da pintura! - disse
ingenuamente
      Poussin.
      O ancião sorriu como um homem habituado de há muito a esse elogio.
      - Mestre Frenhofer! - disse Porbus - não quererá mandar buscar um
pouco do
      seu bom vinho do Reno para mim?
      - Duas pipas! - respondeu o ancião. - Uma para pagar o prazer que
tive
      esta manhã ao ver tua linda pecadora e a outra como um presente de
amizade.
      - Ah! se eu não estivesse sempre doente - respondeu Porbus - e se
quisesse
      deixar-me ver sua Belle Noiseuse, eu poderia fazer alguma pintura
elevada,
      vasta e profunda, na qual as figuras seriam de tamanho natural.
      - Mostrar minha obra! - disse o ancião, emocionado. - Não! não!
preciso
      aperfeiçoá-la ainda. Ontem, ao entardecer, pensei tê-la terminado.
Os
      olhos dela pareciam-me úmidos, sua carne estava agitada. As tranças
dos
      seus cabelos moviam-se. Ela respirava! Embora eu tenha achado o
meio de
      realizar numa tela chata o relevo e as rotundidades da natureza,
hoje de
      manhã, à luz, reconheci meu erro. Ah! para chegar a esse resultado
      glorioso, estudei a fundo os grandes mestres do colorido, analisei
e ergui
      camada por camada os quadros do Ticiano, esse rei da luz; como esse
pintor
      soberano, esbocei minha figura num tom claro com uma pasta flexível
e
      abundante, porque a sombra nada mais é do que um acidente, guarda
isso,
      garoto! Depois voltei à minha obra e, por meio de meias-tintas e de
cores
      claras e translúcidas cuja transparência eu ia diminuindo
gradualmente,
      reproduzi as mais vigorosas sombras e até os mais rebuscados
negros;
      porquanto as sombras dos pintores comuns são de outra natureza que
os seus
      tons claros; é madeira, é bronze, e tudo que quiserem, menos carne
na
      sombra. Sente-se que, se as figuras deles mudassem de posição, os
lugares
      sombreados não se clareariam e não se tornariam luminosos. Evitei
esse
      erro, no qual muitos dos mais ilustres caíram, e em mim a alvura se
realça
      sob a opacidade da mais firme sombra. Não fiz como uma porção de
      ignorantes que pensam desenhar corretamente porque fazem um traço
      cuidadosamente nítido; não, eu não assinalei secamente as bordas
      exteriores da minha figura e não fiz ressaltar até a menor minúcia
      anatômica, porque o corpo humano não acaba por linhas. Nisso, os
      escultores podem aproximar-se mais da verdade do que nós. A
natureza
      comporta uma série de curvas que se envolvem umas nas outras.
      Rigorosamente falando, o desenho não existe! Não se ria, rapaz! Por
mais
      estranha que lhe pareça essa afirmação, algum dia você lhe
compreenderá as
      razões. A linha é o meio pelo qual o homem se dá conta do efeito da
luz
      sobre os objetos; mas na natureza, onde tudo é cheio, não há
linhas: é
      modelando que se desenha, isto é, que se destacam as coisas do meio
em que
      elas se acham: é somente a distribuição da luz que dá aparência ao
corpo!
      Por isso não fixei os traços, espalhei sobre os contornos uma nuvem
de
      meias-tintas louras e quentes que faz com que não se possa com
precisão
      colocar o dedo no lugar em que eles se confundem com o fundo. De
perto,
      esse trabalho parece nebuloso e como que falto de precisão; mas a
dois
      passos tudo se afirma, se detém, se destaca; o corpo gira, as
formas
      tornam-se salientes, sente-se o ar circular em torno. Entretanto,
ainda
      não estou satisfeito, tenho dúvidas. Seria preciso talvez não
desenhar um
      único traço, talvez fosse preferível começar uma figura pelo meio,
      dedicando-se primeiro às saliências mais iluminadas, para passar
depois às
      porções mais sombrias. Não é assim que faz o sol, esse divino
pintor do
      universo? Ó natureza! natureza! quem jamais te surpreendeu nas tuas
fugas!
      Olhem, o excesso de ciência, do mesmo modo que a ignorância, leva a
uma
      negação. Não tenho confiança na minha obra!
      O ancião fez uma pausa, depois prosseguiu:
      - Faz dez anos, meu rapaz, que trabalho; mas o que são dez
minguados anos
      quando se trata de tirar com a natureza? Ignoramos o tempo que o
senhor
      Pigmalião empregou para fazer a única estatua que caminhou!
      O ancião mergulhou em profunda meditação e permaneceu de olhos
fixos,
      brincando maquinalmente com uma faca.
      - Ei-lo em conversação com o seu espírito! - disse Porbus em voz
baixa.
      Ao ouvir tais palavras, Nicolas Poussin sentiu-se sob a influência
de uma
      inexplicável curiosidade de artista. Aquele ancião de olhos
brancos,
      atento e estúpido, que se tornara para ele mais do que um homem,
      afigurou-se-lhe um gênio fantástico que vivesse numa esfera
desconhecida.
      Ele despertava-lhe mil idéias confusas na alma. O fenômeno moral
dessa
      espécie de fascinação não pode ser definido, tanto quanto não o
pode ser a
      emoção provocada por uma canção que lembre a pátria no coração de
um
      exilado. O desprezo que aquele homem velho afetava manifestar pelas
mais
      belas tentativas da arte, sua riqueza, suas maneiras, a deferência
de
      Porbus por ele, aquela obra por tanto tempo mantida em segredo,
obra de
      paciência, sem dúvida uma obra de gênio, se se devia julgar pela
cabeça da
      Virgem que o jovem Poussin tão francamente admirara e que, bela
ainda,
      mesmo ante o Adam de Mabuse, atestava a imperial feitura de um dos
      príncipes da arte: tudo naquele ancião ultrapassava os limites da
natureza
      humana. O que a rica imaginação de Nicolas Poussin pôde apreender
de claro
      e de perceptível ao ver aquela criatura sobrenatural foi uma imagem
      completa da natureza artística, dessa aloucada natureza à qual são
      confiados tantos poderes e que com demasiada freqüência deles
abusa,
      arrastando a fria razão, os burgueses e mesmo alguns amadores
através de
      mil estradas pedregosas onde, para eles, nada há; ao passo que,
      brincalhona nas suas fantasias, essa moça de asas brancas ali
descobre
      epopéias, castelos, obras de arte. Natureza zombeteira e boa,
fecunda e
      pobre! Assim, pois, para o entusiasta Poussin, aquele ancião
tornara-se,
      por uma súbita transfiguração, a própria Arte, a arte com os seus
      segredos, seus ardores e seus devaneios.
      - Sim, meu caro Porbus - volveu Frenhofer - faltou-me até agora
encontrar
      uma mulher irrepreensível, um corpo cujos contor-nos sejam de uma
beleza
      perfeita e cuja carnação... Mas - continuou ele, após uma pausa -
onde
      viverá essa Vênus dos antigos, impossível de achar, tantas vezes
procurada
      e da qual encontramos apenas algumas belezas esparsas? Oh! para ver
um
      momento, uma única vez, a natureza divina, completa, o ideal enfim,
eu
      daria toda a minha fortuna... Mas irei procurar-te nos teus limbos,
beleza
      celestial! Como Orfeu, descerei ao inferno da arte para de lá
trazer a
      vida.
      - Podemos ir embora daqui - disse Porbus a Poussin - ele não nos
ouve
      mais, não nos vê mais!
      - Vamos ao seu ateliê - propôs o rapaz, maravilhado.
      - Oh! o velho retre soube defender-lhe a enxada. Seus tesouros
estão por
      demais bem guardados para que possamos chegar até eles. Não esperei
tua
      opinião e tua fantasia para tentar o assalto do mistério.
      - Há, então, um mistério?
      - Sim - respondeu Porbus. - O velho Frenhofer foi o único discípulo
que
      Mabuse quis ter. Tendo-se tornadoamigo dele, seu salvador, seu pai,
      Frenhofer sacrificou a maior parte de seus tesouros para satisfazer
as
      paixões de Mabuse; em troca, este legou-lhe o segredo do relevo, o
poder
      de dar às figuras essa vida extraordinária, essa flor de natureza,
nosso
      eterno desespero, mas da qual ele possuía tão bem a feitura que um
dia,
      tendo vendido e bebido o damasco de flores com o qual devia vestir-
se por
      ocasião da entrada de Carlos V, ele acompanhou seu senhor com um
vestuário
      de papel pintado de damasco. O brilho particular da fazenda do
traje de
      Mabuse surpreendeu o imperador, o qual, querendo dirigir um
cumprimento ao
      protetor do velho ébrio, descobriu a intrujice. Frenhofer é um
homem
      apaixonado pela nossa arte, que vê mais acima e mais longe do que
os
      outros pintores. Ele meditou profundamente sobre as cores, sobre a
verdade
      absoluta da linha; mas, àforça de pesquisas, chegou mesmo a duvidar
do
      objeto delas. Nos seus momentos de desespero, ele acha que o
desenho não
      existe e que com linhas não se podem reproduzir senão figuras
geométricas;
      o que ultrapassa a verdade, porquanto com a linha e o preto, que
não é uma
      cor, pode-se fazer uma figura; o que prova que a nossa arte é, como
a
      natureza, composta de uma infinidade de elementos: o desenho dá o
      esqueleto, a cor é a vida, mas a vida sem o esqueleto é uma coisa
mais
      incompleta do que o esqueleto sem a vida. Enfim, há alguma coisa
mais
      verdadeira do que tudo isto, e é que a prática e a observação são
tudo num
      pintor, e que, se o raciocínio e a poesia se malquistam com os
pincéis,
      chega-se à dúvida como o velhote, que é tão louco quanto pintor.
Pintor
      sublime, ele teve a desgraça de nascer rico, o que lhe permitiu
divagar;
      não o imite! Trabalhe! Os pintores só devem meditar com o pincel na
mão.
      - Nós penetraremos lá! - exclamou Poussin, que não ouvia mais
Porbus e de
      mais nada duvidava.
      Porbus sorriu ante o entusiasmo do jovem desconhecido e separou-se
dele
      convidando-o a que o fosse visitar.
      Nicolas Poussin voltou a passos lentos para a rue de la Harpe e
      ultrapassou sem se dar conta a modesta hospedaria onde se alojava.
Subindo
      com inquieta celeridade sua escada miserável, chegou a um quarto no
alto,
      situado sob um telhado com trapeira, simples o ligeira cobertura
das casas
      da velha Paris. Junto à única e sombria janela daquele quarto
estava uma
      moça, a qual, ao ruído da porta, ergueu-se subitamente por um
impulso de
      amor; reconhecera o pintor pelo modo com que ele movera o trinco.
      - Que tens? - perguntou-lhe.
      - Tenho... tenho... - exclamou ele sufocado de gozo - que me senti
pintor!
      Até agora tinha duvidado de mim, mas esta manhã tive confiança em
mim!
      Posso ser um grande homem! Crê, Gillette, seremos ricos, felizes!
Há ouro
      nesses pincéis...
      Mas calou-se de repente. Seu rosto grave e vigoroso perdeu sua
expressão
      de alegria quando comparou a imensidão das suas esperanças com a
      mediocridade de seus recursos. As paredes estavam cobertas de
simples
      papéis cheios de esboços a lápis. Não possuía senão quatro telas
próprias.
      As tintas estavam então muito caras e o pobre rapaz via sua paleta
pouco
      mais ou menos vazia. No seio dessa miséria, ele possuía e sentia
riquezas
      incríveis no coração e a superabundância de um gênio devorador.
Trazido a
      Paris por um de seus amigos, fidalgo, ou talvez pelo seu próprio
talento,
      ele ali veio encontrar subitamente uma amante, uma dessas almas
nobres e
      generosas que vêm sofrer junto a um grande homem, partilham seus
trabalhos
      e se esforçam por compreender-lhes os caprichos; forte para a
miséria e o
      amor, como outros são intrépidos para usar o luxo e fazer
ostentação de
      sua insensibilidade. O sorriso que errava nos lábios de Gillette
dourava
      aquele sótão e rivalizava com o brilho do céu. O sol nem sempre
brilhava,
      ao passo que ela sempre estava ali, interiorizada na sua paixão,
presa à
      sua felicidade, ao seu sofrimento, consolando o gênio que
transbordava no
      amor antes de se apoderar da arte.
      - Ouve, Gillette, vem.
      A obediente e alegre moça saltou sobre os joelhos do pintor. Era
ela toda
      graça, toda beleza, linda como uma primavera, ornada com todas as
riquezas
      femininas e iluminando-as com o fogo de uma bela alma.
      - Oh! Deus! - exclamou ele - jamais me atreverei a dizer-lhe...
      - Um segredo? - perguntou ela. - Quero sabê-lo.
      Poussin permaneceu pensativo.
      - Fala de uma vez.
      - Gillette... pobre coração amado!
      - Oh! queres alguma coisa de mim?
      - Sim.
      - Se queres que eu pose ainda para ti, como no outro dia - replicou
ela
      com um arzinho amuado - jamais consentirei em tal, porque nesses
momentos
      teus olhos não me dizem mais nada. Não pensas mais em mim e contudo
me
      olhas.
      - Preferirias ver-me copiando uma outra mulher?
      - Talvez - disse ela - se fosse bem feia.
      - Pois bem - replicou Poussin, em tom sério - se, pela minha glória
      futura, se, para me tornar um grande pintor, fosse preciso ires
posar para
      outro?
      - Queres pôr-me à prova - respondeu ela. - Sabes perfeitamente que
eu não
      iria.
      Poussin inclinou a cabeça sobre o peito, como um homem que sucumbe
a uma
      alegria ou a uma dor forte demais para a sua alma.
      - Ouve - disse ela puxando Poussin pela manga de seu gibão surrado.
- eu
      te disse, Nick, que daria minha vida por ti; mas nunca te prometi
      renunciar ao meu amor enquanto vivesse.
      - Renunciar? - exclamou o jovem artista.
      - Se eu me mostrasse assim a um outro, tu não me amarias mais, e eu
mesma
      me acharia indigna de ti. Obedecer aos teus caprichos não é uma
coisa
      natural e simples? Embora não queira, sinto-me feliz e mesmo
orgulhosa por
      fazer tua vontade querida. Mas para um outro, Deus me livre!
      - Perdoa, minha Gillette - disse o pintor ajoelhando-se aos pés
dela. -
      Prefiro ser amado a ser glorioso. Para mim, és mais bela do que a
fortuna
      e as honrarias. Vai, atira fora meus pincéis, queima esses esboços.
      Enganei-me. Minha vocação é amar-te. Não sou um pintor, sou um
amante.
      Morram a arte e todos os seus segredos!
      Ela admirava-o, feliz, seduzida. Ela reinava, sentia
instintivamente que
      as artes eram esquecidas por ela e atiradas a seus pés como um grão
de
      incenso.
      - Entretanto, trata-se apenas de um ancião - insistiu Poussin. -
Ele não
      poderá ver em ti senão a mulher. Tu és tão perfeita!
      - É preciso amar muito - exclamou ela, pronta a sacrificar seus
escrúpulos
      de amor a fim de recompensar seu amante por todos os sacrifícios
que ele
      lhe fazia. - Mas - acrescentou - isso seria perder-me. Ah! perder-
me por
      ti... Sim, seria uma coisa belíssima! Mas tu me esquecerás. Oh! que
mau
      pensamento esse que tiveste!
      - Tive-o e te amo - disse ele com uma espécie de contrição. - Mas
então
      serei um infame?
      - Consultemos o velho Hardouin - propôs ela.
      - Oh! não; fique isso em segredo entre nós dois.
      - Pois bem, irei; mas que não estejas presente - disse ela. - Fica
na
      porta, armado com o teu punhal; se grito, entra e mata o pintor.
      Não vendo mais do que sua arte, Poussin estreitou Gillette em seus
braços.
      "Ele não me ama mais!", pensou Gillette, quando ficou só.
      Já estava arrependida da sua resolução. Mas logo foi presa de um
pavor
      mais cruel do que seu arrependimento; esforçou-se em repelir um
pensamento
      horrível que se erguia em seu coração. Julgava já estar amando
menos o
      pintor por suspeitar ser ele menos estimável do que antes.
     
     
      II
      Catarina Lescault
     
      Três meses depois do encontro de Poussin e Porbus, este foi visitar
mestre
      Frenhofer. O ancião estava então sujeito a um desses desânimos
profundos e
      espontâneos cuja causa, se devemos dar créditos aos matemáticos da
      medicina, reside numa má digestão, no vento, no calor, ou em alguma
      inchação dos hipocôndrios; e, segundo os espiritualistas, na
imperfeição
      da nossa natureza moral. O velhote pura e simplesmente se cansara
em dar a
      última demão no seu misterioso quadro. Estava preguiçosamente
sentado numa
      vasta poltrona de carvalho esculpido, forrada de couro preto; e,
sem sair
      de sua atitude melancólica, dirigiu a Porbus o olhar de um homem
que se
      instalara no seu tédio.
      - E então, mestre - perguntou-lhe Porbus - o ultramar que foi
buscar em
      Bruges não era bom? Será que não soube misturar nosso novo branco?
Seu
      óleo era ruim ou os pincéis eram teimosos?
      - Ai de mim! - exclamou o ancião - durante um momento acreditei que
minha
      obra estivesse concluída; mas com certeza me enganei nalguns
detalhes e
      não sossegarei enquanto não dissipar minhas dúvidas. Estou decidido
a
      viajar e vou à Turquia, à Grécia, à Ásia para procurar por lá um
modelo e
      comparar meu quadro com alguns nus... É possível que eu tenha lá em
cima -
      continuou, esboçando um sorriso de satisfação - a própria natureza.
Por
      vezes, quase tenho medo de que um sopro desperte aquela mulher e
que ela
      desapareça.
      Depois, ergueu-se de repente, como para partir.
      - Oh! oh! - respondeu Porbus - chego a tempo para poupar-lhe as
despesas e
      as fadigas da viagem.
      - Como assim? - perguntou Frenhofer, admirado.
      - O jovem Poussin é amado por uma mulher cuja incomparável beleza
não tem
      a menor imperfeição. Mas, meu caro mestre, se ele consente em
      emprestar-lha, será preciso pelo menos que nos deixe ver sua tela.
      O ancião permaneceu de pé, imóvel, num estado de perfeita
estupidez.
      - Como! - exclamou ele, por fim, dolorosamente - mostrar minha
criatura,
      minha esposa? rasgar o véu sob o qual castamente encobri minha
felicidade?
      Mas isso seria uma horrível prostituição! Faz dez anos que vivo com
essa
      mulher, ela é minha, só minha, ela me ama. Não me sorriu a cada
pincelada
      que lhe dei? Ela tem uma alma, a alma com que a dotei. Ela coraria
se
      outros olhos que não os meus a fixassem. Mostrá-la! mas qual é o
marido, o
      amante suficientemente vil para levar sua mulher à desonra? Quando
fazes
      ora quadro para a Corte, não pões nele toda a tua alma, não vendes
aos
      cortesãos mais do que manequins coloridos. Minha pintura não é uma
      pintura, é um sentimento, uma paixão! Nascida na minha oficina, ela

      deve permanecer virgem e não pode sair senão vestida. A poesia e as
      mulheres só se entregam nuas aos seus amantes! Possuímos nós o
modelo de
      Rafael, a Angélica de Ariosto, a Beatriz do Dante? Não! não lhes
vemos
      senão as formas. Pois bem, a obra que tenho lá em cima trancada a
ferrolho
      é uma exceção na nossa arte. Não é uma tela, é uma mulher! uma
mulher com
      a qual choro, rio, converso, penso. Queres que repentinamente eu
abandone
      uma felicidade de dez anos como se atira uma capa; que
repentinamente eu
      deixe de ser pai, amante e deus? Essa mulher não e uma criatura, é
uma
      criação. Que venha o teu rapaz, eu lhe darei meus tesouros, quadros
de
      Correggio, de Michelangelo, de Ticiano, beijarei as pegadas de seus
passos
      na poeira; mas fazer dele meu rival? opróbrio sobre mim! Ah! ah!
sou mais
      amante ainda do que pintor. Sim, terei forças para queimar a minha
Belle
      Noiseuse ao dar o último suspiro; mas fazê-la suportar o olhar de
um
      homem, de um rapaz, de um pintor? não, não! Mataria no dia seguinte
aquele
      que a tivesse poluído com um olhar! Eu te mataria agora mesmo, a
ti, que
      és meu amigo, se não a saudasses de joelhos! Queres agora que eu
submeta
      meu ídolo às frias miradas e às críticas estúpidas dos imbecis? Ah!
o amor
      é um mistério que só tem vida no fundo dos corações, e tudo está
perdido
      quando um homem diz, mesmo ao seu amigo: "Aí está a mulher que
amo!"
      O ancião parecia ter remoçado; seus olhos tinham brilho e tinham
vida;
      suas faces pálidas estavam matizadas de um vermelho vivo e suas
mãos
      tremiam. Porbus, espantado com a violência apaixonada com que
aquelas
      palavras foram proferidas, não sabia o que responder a um
sentimento tão
      novo como profundo. Frenhofer estava no uso da razão ou louco?
Estaria ele
      subjugado por uma fantasia de artista, ou as idéias que ele
exprimira
      procederiam desse singular fanatismo que se produz em nós pela
criação
      laboriosa de uma grande obra? Poder-se-ia esperar transigir um dia
com
      aquela paixão estranha?
      Empolgado por todos esses pensamentos, Porbus disse ao ancião:
      - Mas não é uma mulher por outra mulher? Não entrega Poussin sua
      amante aos olhares do senhor?
      - Que amante? - respondeu Frenhofer. - Cedo ou tarde ela o trairá.
A minha
      me será sempre fiel!
      - Pois bem - disse Porbus - não falemos mais nisso. Mas, antes do
senhor
      achar, mesmo na Ásia, uma mulher tão bela, tão perfeita como esta
de que
      lhe falo, morrerá talvez sem ter concluído seu quadro.
      - Oh! ele está acabado - disse Frenhofer. - Quem o visse, julgaria
estar
      vendo uma mulher deitada num leito de veludo, velada por cortinas.
Junto a
      ela uma tripeça de ouro exala perfumes. Ficarias tentado a agarrar
as
      borlas dos cordões que retêm as cortinas, e te pareceria ver o seio
de
      Catarina Lescault, uma bela cortesã chamada Belle Noiseuse, mover-
se com a
      respiração. Entretanto, eu quisera ter certeza...
      - Vá pois para a Ásia - respondeu Porbus, ao perceber uma certa
hesitação
      no olhar de Frenhofer.
      E Porbus deu alguns passos em direção à porta da sala.
      Nesse momento, Gillette e Nicolas Poussin tinham chegado junto à
      residência de Frenhofer. Quando a moça estava a ponto de entrar,
soltou o
      braço do pintor e recuou como se a tivesse invadido algum súbito
      pressentimento.
      - Mas, afinal, que venho eu fazer aqui? - perguntou ao amante com
um som
      de voz profundo e olhando-o fixamente.
      - Gillette, deixei-te senhora de tua vontade e quero obedecer-te em
tudo.
      Tu és minha consciência e minha glória. Volta para casa; eu serei
mais
      feliz, talvez, do que se tu...
      - Pertenço-me, acaso, quando me falas assim? Oh! não, não sou senão
uma
      criança... Vamos acrescentou, parecendo fazer um esforço violento -
se
      nosso amor morrer e se puser no meu coração um infindável
arrependimento,
      não será tua celebridade o preço da minha obediência aos teus
desejos?
      Entremos, será ainda viver o estar sempre como uma recordação na
tua
      paleta.
      Ao abrirem a porta da casa, os dois amantes se encontraram com
Porbus, o
      qual, surpreendido pela beleza de Gillette, cujos olhos estavam
naquele
      momento rasos de lágrimas, segurou-a toda trêmula e, levando-a ante
o
      ancião, disse-lhe:
      - Veja, não vale ela todas as obras-primas do mundo?
      Frenhofer estremeceu. Gillette ali estava, na atitude ingênua e
simples de
      uma jovem georgiana inocente e medrosa, raptada por bandidos e
apresentada
      a algum mercador de escravos. Um pudico rubor corava seu rosto; ela
      baixava os olhos; as mãos pendiam aos lados, as forças pareciam
      abandoná-la, e lágrimas protestavam contra a violência feita ao seu
pudor.
      Nesse momento, Poussin, desesperado por ter tirado do sótão aquele
belo
      tesouro, amaldiçoou-se a si próprio. Tornou-se mais amante do que
artista,
      e mil escrúpulos torturaram-lhe o coração quando viu os olhos
      rejuvenescidos do ancião, o qual, por um hábito de pintor, despiu,
por
      assim dizer, aquela moça, adivinhando-lhe as formas mais secretas.
      Retornou então ao feroz ciúme do verdadeiro amor.
      - Partamos, Gillette! - bradou.
      Ante aquele rasgo, a amante, alegre, ergueu os olhos para ele, viu-
o, e
      correu para seus braços.
      - Ah! então tu me amas! - respondeu, desatando a chorar.
      Depois de ter tido a energia de fazer calar seu sofrimento, ela não
tinha
      forças para ocultar sua felicidade.
      - Oh! deixe-ma por um momento - disse o velho pintor - e poderás
      compará-la com a minha Catarina... Sim, consinto.
      No grito de Frenhofer ainda havia amor. Parecia ter faceirice para
com seu
      simulacro de mulher e gozar de antemão o triunfo que a beleza de
sua
      criação ia conseguir sobre a de uma verdadeira moça.
      - Não o deixe desdizer-se - exclamou Porbus, batendo no ombro de
Poussin.
      - Os frutos do amor passam depressa, os da arte são imortais.
      - Para ele - respondeu Gillette, olhando Poussin e Porbus
atentamente - eu
      não serei então mais do que uma mulher?
      Ergueu a cabeça com altivez; mas, quando, depois de dirigir um
olhar
      cintilante a Frenhofer, ela viu seu amante entretido a contemplar
outra
      vez o retrato que anteriormente ele tomara por um Giorgione:
      - Ah! - disse ela - subamos! Ele nunca me olhou assim.
      - Ancião - disse Poussin, arrancando à sua meditação pela voz de
Gillette
      - olha esta espada, eu a mergulharei no teu coração à primeira
palavra de
      queixa que proferir esta moça, atearei fogo à tua casa, e ninguém
sairá
      dela. Compreendes?
      Nicolas Poussin estava sombrio e seu falar foi terrível. Essa
atitude e
      sobretudo o gesto do jovem pintor consolaram Gillette, que quase o
perdoou
      por sacrificá-la à pintura e ao seu glorioso futuro. Porbus e
Poussin
      ficaram na porta do ateliê, olhando em silêncio um para o outro.
Se, a
      princípio, o pintor de Maria Egipcíaca se permitiu algumas
exclamações:
      "Ah! ela se está despindo, ele manda-a colocar-se em boa luz!
Compara-a!",
      pronto calou-se ante o aspecto de Poussin, cujo semblante estava
      profundamente triste; e, conquanto os velhos pintores não tenham
mais
      escrúpulos desses, tão mesquinhos diante da arte, ele admirou-os,
de tal
      forma eram ingênuos e bonitos. O rapaz estava com a mão no punho da
espada
      e com o ouvido quase colado à porta. Ambos, na sombra e de pé,
      assemelhavam-se assim a dois conspiradores à espera da hora de
apunhalar
      um tirano.
      - Entrem, entrem! - disse o ancião, radiante de felicidade. Minha
obra
      está perfeita, e agora posso mostrá-la com orgulho. Jamais pintor,
      pincéis, tintas, tela e luz farão uma rival a Catarina Lescault, a
bela
      cortesã!
      Possuídos de viva curiosidade, Porbus e Poussin correram para o
centro de
      uma vasta oficina coberta de pó, onde tudo estava em desordem, onde
viram
      aqui e ali quadros pendurados nas paredes. Detiveram-se primeiro
diante de
      uma figura de mulher de tamanho natural, seminua, que os encheu de
      admiração.
      - Oh! não se ocupem com isso - disse Frenhofer - é uma tela que
borrei
      para estudar uma pose; esse quadro não vale nada. Aí estão meus
erros -
      continuou, mostrando-lhes encantadoras composições penduradas às
paredes,
      à roda deles.
      Ante essas palavras, Porbus e Poussin, estupefatos com aquele
desdém por
      tais obras, procuraram o retrato anunciado, sem conseguir vê-lo.
      - Pois bem, aí está ele! - disse-lhes o ancião, cujos cabelos
estavam em
      desordem, cujo rosto estava injetado por uma exaltação
sobrenatural, cujos
      olhos cintilavam, e que ofegava como um rapaz ébrio de amor. - Ah!
ah! -
      exclamou - não esperavam tanta perfeição! Estão diante de uma
mulher e
      procuram um quadro. Há tanta profundidade nessa tela, o ar é nela
tão real
      que não podem mais distingui-lo do ar que nos cerca. Onde está a
arte?
      perdida, desaparecida! Eis as formas verdadeiras de uma moça. Não
lhe dei
      bem o colorido, a precisão das linhas que parecem terminar o corpo?
Não é
      o mesmo fenômeno que nos apresentam os objetos que estão na
atmosfera como
      os peixes na água? Admirem como os contornos se destacam do fundo!
Não
      lhes parece que podem passar as mãos nesse dorso? Também, durante
sete
      anos, estudei os efeitos da conjunção da luz e dos objetos. E esses
      cabelos, não os inunda a luz?... Mas, creio, ela respirou!...
Vejam, esse
      seio! Ah! quem não o quereria adorar de joelhos? As carnes
palpitam. Ela
      vai erguer-se, esperem!
      - Está vendo alguma coisa? - perguntou Poussin a Porbus.
      - Não. E você?
      - Nada.
      Os dois pintores deixaram o velho entregue a seu êxtase, olharam
para ver
      se a luz, ao cair a prumo sobre a tela que ele lhes estava
mostrando, não
      neutralizava todos os seus efeitos. Examinaram então a pintura
      colocando-se à direita, à esquerda, de frente, abaixando-se e
      levantando-se alternativamente.
      - Sim, sim, é mesmo uma tela - dizia-lhes Frenhofer, enganando-se
com a
      finalidade daquele exame escrupuloso. - Olhem, aqui está a moldura,
o
      cavalete, enfim, aqui estão minhas tintas, meus pincéis.
      E apoderou-se de um pincel, que lhes apresentou num gesto ingênuo.
      - O velho lansquenete está divertindo-se à nossa custa - disse
Poussin,
      voltando para diante do pretenso quadro. - Não vejo ali senão cores
      confusamente amontoadas e contidas por uma porção de linhas
esquisitas que
      formam uma muralha de pintura...
      - Nós nos enganamos, veja! - respondeu Porbus.
      Aproximando-se, perceberam num canto da tela a ponta de um pé nu
que saía
      daquele caos de cores, de tons, de matizes indecisos, espécie de
bruma sem
      forma; mas um pé delicioso, um pé com vida! Ficaram petrificados de
      admiração diante daquele fragmento escapo a uma incrível, a uma
lenta e
      progressiva destruição. Aquele pé aparecia ali como um torso de
alguma
      Vênus de mármore de Paros que surgisse de entre os escombros de uma
cidade
      incendiada.
      - Há uma mulher por baixo disso! - exclamou Porbus, fazendo Poussin
notar
      as camadas de tinta que o velho pintor superpusera sucessivamente
ao
      julgar que aperfeiçoava sua pintura.
      Os dois artistas viraram-se espontaneamente para Frenhofer,
começando a
      compreender, porém de modo vago, o êxtase no qual ele vivia.
      - Ele está de boa-fé - disse Porbus.
      - Sim, meu amigo - respondeu o ancião, despertando - na arte é
preciso fé,
      fé, e viver muito tempo com a própria obra para produzir semelhante
      criação. Algumas dessas sombras custaram-me muito trabalho. Olhe
sobre a
      face, ali, abaixo dos olhos, há uma leve penumbra que, se a
observarem na
      natureza, parecer-lhes-á quase intraduzível. Pois bem, julgam vocês
que
      esse efeito não me custou trabalhos inauditos para reproduzi-lo?
Mas
      também, meu caro Porbus, olha atentamente para o meu trabalho e
      compreenderás melhor o que eu te dizia sobre o modo de tratar o
modelado e
      os contornos. Olha a luz do seio e vê como, por uma série de
retoques e de
      realces fortemente empastados, consegui agarrar a verdadeira luz e
      combiná-la com a alvura lustrosa dos tons iluminados; e, como por
um
      trabalho oposto, apagando as saliências e o grão da pasta, pude, à
força
      de amaciar o contorno da minha figura, mergulhada nos semitons,
suprimir
      até a idéia de desenho e de meios artificiais, e dar-lhe o aspecto
e o
      próprio ondulado da natureza. Aproximem-se e verão melhor esse
trabalho.
      De longe, ele desaparece. Vejam! ali, creio, ele é bem visível. E
com a
      ponta do pincel designava aos dois pintores um bloco de cor clara.
      Porbus bateu no ombro do ancião, virando-se para Poussin:
      - Sabe que vemos nele um bem grande pintor? - disse.
      - Ele é ainda mais poeta do que pintor - respondeu Poussin
gravemente.
      - Aqui - prosseguiu Porbus, tocando a tela - acaba a nossa arte
sobre a
      terra.
      - E, daí, vai perder-se no céu - disse Poussin.
      - Quanto gozo nesse pedaço de tela! - exclamou Porbus.
      O ancião, absorto, não os ouvia e sorria àquela mulher imaginária.
      - Mas cedo ou tarde ele se aperceberá de que não há nada na sua
tela! -
      exclamou Poussin.
      - Nada na minha tela! - disse Frenhofer, olhando alternadamente os
dois
      pintores e seu pretenso quadro.
      - Que fez você! - disse Porbus em voz baixa a Poussin.
      O velho segurou com força o braço do rapaz e disse-lhe:
      - Nada vês, labrego! tratante! patife! Sem-vergonha! Para que,
pois,
      subiste aqui? Meu bom Porbus - disse ele virando-se para o pintor -
será
      que você também se está divertindo à minha custa? Responda! sou seu
amigo,
      diga, teria eu estragado meu quadro?
      Porbus, indeciso, não se atreveu a falar; mas a ansiedade pintada
na
      fisionomia lívida do ancião era tão cruel que ele apontou para a
tela,
      dizendo:
      - Veja!
      Frenhofer contemplou seu quadro um instante e cambaleou.
      - Nada! nada! E ter trabalhado dez anos!
      Sentou-se e chorou.
      - Sou pois um imbecíl, um louco! não tenho nem talento nem
capacidade! Não
      sou senão um homem rico que, ao caminhar, nada mais faz do que
caminhar!
      Não terei, pois, produzido nada!
      Contemplou a tela através de suas lágrimas, ergueu-se subitamente
com
      orgulho e lançou aos dois pintores um olhar fulgurante:
      - Pelo sangue, pelo corpo, pela cabeça de Cristo! Vocês são uns
invejosos
      que me querem fazer crer que ela está estragada, para ma roubarem!
Eu
      vejo-a! - gritou - ela é maravilhosamente bela...
      Naquele momento Poussin ouviu o pranto de Gillette, esquecida num
canto.
      - Que tens, meu anjo? - perguntou-lhe o pintor, voltando a ser um
      apaixonado.
      - Mata-me! - disse ela. - Eu seria uma infame se te amasse ainda,
porque
      te desprezo... Admiro-te, e me causas horror! Amo-te, e creio que
já te
      odeio!
      Enquanto Poussin ouvia Gillette, Frenhofer cobria sua Catarina com
uma
      sarja verde, com a séria tranqüilidade de um joalheiro que fechasse
suas
      gavetas ao julgar-se na companhia de hábeis ladrões. Dirigiu aos
dois
      pintores um olhar profundamente dissimulado, repleto de desprezo e
de
      desconfiança, pô-los silenciosamente fora de sua oficina, com uma
presteza
      convulsiva; depois, à porta de sua casa disse-lhes:
      - Adeus, meus amiguinhos.
      Esse adeus gelou os dois pintores. No dia seguinte, Porbus,
inquieto,
      voltou para ver Frenhofer e soube que ele morrera à noite, depois
de ter
      queimado suas telas.
     
      Paris, fevereiro de 1832

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