domingo, 14 de julho de 2013

Alain (Émile Chartier) (1900) - O problema da percepção


 Alain (Émile Chartier) (1900)  « O problema da percepção »

Um documento produzido em versão digital por Bertrand Gibier,
professor voluntário de filosofia no Colégio de Montreueil-sur-Mer (em Pas-de-calais).
Correio eletrônico: bertrand.gibier@ac-lille.fr

Como parte da coleção: “Os clássicos das ciências sociais”
Site web: http://www.uqac.uquebec.ca/zone30/Classiques_des_sciences_sociales/index.html
Fundada e dirigia por Jean-Marie Tremblay,
Professor de sociologia no Cégep de Chicoutimi


Uma coleção desenvolvida em colaboração com a Biblioteca
Paul-Émile-Boulet da Universidade de Québec em Chicoutimi

Traduzido para o português em janeiro e fevereiro de 2012 por:
Miraldo Antoninho Ohse,
Correio eletrônico: ohsepoa@gmail.com

Site web:


Blogs:


Esta edição foi realizada por Bertrand Gibier, voluntário
Professor de filosofia Colégio de Montreueil-sur-Mer (em Pas-de-calais),
 a partir de:

Alain (Émile CHARTIER), (1900)

« O problema da percepção »

Uma edição eletrônica realizada a partir dos discursos de d’Alain (Émile
Chartier) (1900), “O problema da percepção” na Revista de Metafísica e
Moral, novembro de 1900 (VIIIe ano), pp. 745-754.

Política dos caracteres utilizados:

Para o texto: Times, 12 pontos.
Para as notas de rodapé: Times, 8 pontos.

Edição concluída em 25 de julho de 2003 em Chicoutimi, Québec.

Émile CHARTIER

OS PROBLEMAS DA PERCEPÇÃO

REVISTA DE METAFÍSICA E DE MORAL,
Tomo VIII, novembro de 1900, PP. 745-754.

 O senso comum não vê na percepção nenhum problema. Ele aumenta quando perceber é uma função simples e imediata, por efeito do qual as coisas estão presentes no pensamento, tais como elas são e todas feitas, com suas qualidades, suas dimensões, sua forma, suas distâncias respectivas e suas posições.
Mas a reflexão demonstra a insuficiência desta concepção. Com efeito, é evidente que certas percepções, que se parecem imediatas, são, todavia, adquiridas, ou seja, não inatas. Eu vejo um cubo de pedra e me parece que eu o vejo imediatamente se destacar no relevo sobre o solo. No entanto, isto que eu vejo deste cubo não difere em nada de um desenho traçado sobre um plano e que me representa este cubo em perspectiva. Isso demonstra que eu posso aí me enganar, e considerar como um relevo um desenho habilmente traçado num plano, já que eu posso ver o relevo sem que o cubo exista. Logo, o cubo não é transmitido pela vista, mas ao contrário, o pensamento o acrescenta às coisas, ou seja, naquilo que é transmitido pela vista e como uma consequência destes dados.
Em geral, todas as vezes que um dos meus sentidos me engana, devo concluir que isto sobre o qual me engano não é dado tal como o percebo (sem o que a percepção seria verdadeira). Se os sentimentos não me fizessem perceber o que dele é dado, eles não me enganariam; ou melhor, se eu não percebia o que é dado aos meus sentidos, tudo o que eu percebesse seria real por definição. Errar supõe invenção, adição, modificação, criação.
Mas todos os sentidos são capazes de nos enganar, donde é razoável concluir que a maior parte das percepções que se parecem imediatas são, na realidade, o resultado de uma educação da qual a memória não guarda os traços e que antes de aprender a pensar, nós temos de aprender a distinguir.
Mas como fazer a separação do que é comunicado daquilo que é adquirido? É bastante para isso estudar umas após as outras as ilusões conhecidas, de descobrir todo um sistema de raciocínios escondidos, e  concluir que o espírito, na percepção, é até um certo ponto ativo? Por este método de simples enumeração, nós estamos condenados a ignorar porque a atividade do espírito é necessária, e quais são os limites de sua intervenção. É-nos necessário, pois, em lugar de registrar os fatos, buscar a nécessaire (o essencial, o indispensável), e nos perguntar o que pode ser dado, e o que não pode ser dado, sendo necessariamente adquirido.
Os objetos cujo conjunto constitui o mundo são conhecidos como distintos uns dos outros; como situados, em relação a nós e em relação aos outros, em certas distâncias, como caracterizados por dimensões determinadas, uma certa forma, um certo peso, uma certa solidez ou resistência, uma temperatura determinada, uma cor, um odor, um sabor, uma sonoridade.
A noção de objetos distintos é necessariamente adquirida, ou seja, supõe necessariamente certas experiências. Com efeito, nós percebemos bem nas mudanças mais ou menos bruscas, mas não nas interrupções, nos vazios, ou seja, nas separações verdadeiras entre as coisas, de tal maneira que nada não nos diz em primeira inspeção que a mesa, o livro, e o ar frio que rodeia a tudo, não são um só e mesmo objeto. Para conhecer um objeto como distinto dos outros, como tendo uma unidade, como formando um todo completo, é necessário o ter visto mudar de local sem mudar de natureza, ou melhor ainda, ter mudado ele mesmo de lugar. Nós chegamos em seguida, por analogia, em conceber como distintos, ou seja, como transportáveis, os objetos que se não podem pensar em transportar, como as casas, uma montanha (1).
A noção da distância que nos separa dos objetos é necessariamente adquirida. Notamos, primeiro, que ela não pode nos ser dada, nem para o tato, nem para o gosto, os quais exigem o contato e que, por conseguinte, não nos fazem naturalmente conhecer que os objetos situados a uma distância nula, em outros termos, do exercício destes sentidos não podem resultar os dois conhecimentos imediatos que resultam da mudança das percepções: a ideia de alguma coisa do presente e a ideia de alguma coisa ausente, mas ausente não quer dizer distante, pois distante é alguma coisa mais além e significa mediatamente presente. É necessário então, para representar um objeto como distante, saber, ao mesmo tempo, que ele está ausente e que pode retornar novamente ao presente por efeito dum certo movimento após algum de uma séria determinada de percepções. Isto supõe que se tenha aprendido a conhecer esta série, que se tenha experimentado sobre este movimento, isto significa que a noção de distância é adquirida.
O olfato e o ouvido nos permitem conhecer, no odor ou no ruído, um objeto distante ao tato; mas este conhecimento não é, evidentemente, nem imediato nem primitivo; nós começamos por
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(1)                É da ideia do objeto transportável dum lugar a outro, ou seja, de um grupo em outro grupo, e da generalização desta ideia que vem a estranha noção da divisibilidade do espaço. Representar-se a divisão de um espaço, é se representar suas partes como transportáveis, como móveis, como separáveis umas das outras. Em realidade, o espaço não é divisível no sentido próprio da palavra, porque sendo homogêneo, ele não se presta a nenhuma transposição efetiva de suas partes, e também, e sobretudo, porque ele é ele-mesmo o lugar e como a substância nas transposições, e que, por conseguinte, quando tudo é transposto, ele-mesmo resta no lugar e todas as suas partes conservam suas relações respectivas de posição. Nós podemos fazer mover um objeto da direita para a esquerda, mas ainda é preciso que exista, antes, durante e depois esta ação, existência permanente de um espaço a direita, de um espaço a esquerda e de um espaço intermediário. A noção de espaço é a noção de possibilidade do transporte de uma coisa e quando nós queremos prolongar o espaço mais além de todo o limite, nós representamos o transporte possível de um objeto num certo sentido indefinidamente. É-nos, então, impossível de imaginar, nem de conceber a menor transposição, a menor mobilidade de uma parte qualquer no espaço, pois o espaço é o juiz, ou se nós quisermos a arena do movimento É necessário então que ele seja imóvel.
conhecer um odor presente, um som presente, um e outro situados numa distância nula; é alguma coisa de uma educação onde nós chegamos a estabelecer uma relação entre estas percepções e a existência de um corpo situado numa certa distância para nosso toque.
A visão parece nos fazer conhecer imediatamente os objetos como distantes em relação a nós. Na realidade, não é nada disso. Os objetos que nós vemos estão todos presentes, já que nós os vemos; logo, eles estão todos, para nossa vista, a uma distância nula. Somente aprendemos a estabelecer uma relação entre estas percepções visuais presentes e as percepções tácteis somente possíveis por efeito de certos movimentos. Em outros termos, nós julgamos pela visão que os objetos, não distantes para a vista, estão distantes para o toque. Porém, esta noção de distância se fundamenta nas experiências. Ela é necessariamente adquirida.
A noção da distância que separa os objetos uns dos outros não pode ser dada imediatamente quando os dois objetos são conhecidos ao mesmo tempo, pois o conhecimento de uma distância como dada supõe o conhecimento dos dois termos extremos desta distância.
O ouvido, o olfato e o gosto não são pontos capazes de nos fazer conhecer ao mesmo tempo dois objetos distintos, pois dois sabores simultâneos, dois odores simultâneos se fundem num só, dois sons simultâneos formam um acorde, consonante ou dissonante. Por isso, por meio destes sentidos nós não podemos conhecer as diferenças senão na sucessão. Por conseguinte, o conhecimento de um dos termos extremos, de uma distância excluindo o conhecimento de outra, jamais a distância entre dois objetos não poderá ser alcançada diretamente por nenhum destes sentidos.
Ele não parece ser o mesmo para a vista, pois duas cores semelhantes podem ser conhecidas simultaneamente sem se superpor para formar uma cor composta. Então a vista parece poder fazer conhecer, ao mesmo tempo, dois objetos como distintos e, no mesmo golpe, a distância que os separa. Observamos, no entanto, que este poder da visão, na suposição que existe, está encerrado em limites muitos estreitos, pois logo que dois pontos A e B são separados por uma distância aparente um pouco considerável (tal como 3 metros a dois passos de distância) torna-se impossível à visão conhecer todos os dois ao mesmo tempo. Ela não os conhece senão sucessivamente e, por conseguinte, longe de prender de um só golpe a distância que os separa, ela não prende em cada instante uma parte deixando andar aos outros, de tal maneira que jamais esta distância não lhe é dada. De onde é necessário concluir que, todas as vezes que dois objetos distintos A e B nãopodem ser conhecidos senão sucessivamente e por um movimento dos olhos, a distância AB não pode de nenhuma maneira ser dada como objeto à vista.
Consideremos, pois, dois pontos A e B muito afastados um do outro. Aproximamo-los um do outro num movimento contínuo. Chegará um momento onde a distância AB, em primeiro lugar, percorre sem cessar, imperceptível e fugaz, aparecendo e desaparecendo a cada instante, deixando-se enfim apanhar de um só olhar no campo visual. Mas é impossível de dizer em qual momento preciso esta percepção direta e imediata da distância AB torna-se possível. Se existia realmente uma diferença radical, uma diferença de natureza entre a percepção de AB e a percepção de A’ e B’, quando se passa de um gênero de percepção a outro, nós não deixaremos de aperceber e de experimentar uma brusca mudança. Portanto, não é nada disso. Donde nós podemos concluir, sem arriscar muito de nos enganar, que os pontos A’B’, tão próximos que sejam, não são jamais conhecidos rigorosamente ao mesmo tempo, e que a distância A’B’, tão pequena que seja, não pode jamais ser percebida senão se a vista a percorrer por um movimento. Unicamente, estes movimentos tornando-se mais e mais pequenos a medida que a distância diminui, são cada vez menos conscientes, de tal sorte que nenhuma distância não será dada como objeto à vista.
Mas se é assim, o movimento dos olhos seria a condição necessária de toda a percepção visual. Uma experiência conhecida vem confirmar esta suposição e arruinar a crença contrária ao senso comum. Nós sabemos que se alcançarmos a imobilização dos olhos de um sujeito, seus outros sentidos não perceberão naquele momento nada de notável. Ele cessa inteiramente de perceber, isto se exprime dizendo que ele dorme e seus olhos tornam-se inúteis porque eles estão imóveis, se fazendo cair sob as pálpebras tomando delas mesmas a posição de repouso.
O senso comum, assim despojando uma certeza, se deixa menos facilmente inquietar em suas crenças habituais quando se trata de falar do tato, pois aqui existe um fato a nos objetar: a mão, aplicada sobre um objeto, faz conhecer imediatamente diferentes pontos deste objeto e da distância que os separa; assim a distância, que para a visão é talvez uma noção adquirida, seria, pelo menos, para o tato uma noção primitiva. O fato alegado não é, no entanto decisivo, pois se eu posso agora perceber a distância para o toque, sem fazer nenhum movimento, isso resulta talvez de que eu tenha aprendido a conhecer as dimensões constantes das partes de meu corpo e particularmente de minha mão. Esta ideia é tanto quanto mais verossímil que o conhecimento das distâncias pela mão imóvel é muito imperfeita, enquanto que, ao contrário, nós vemos as mãos dos cegos em um perpétuo movimento. Enfim, nós podemos ir ainda mais longe e sustentar que a mão, mesmo aplicada sobre um objeto, não está necessariamente, na verdade, toda de fato imóvel. Com efeito, suas partes são capazes, umas em relação às outras, de pequenos movimentos que podem variar a cada instante as pressões respectivas destas partes sobre o objeto, de tal modo que, mesmo imóvel na aparência, a mão seria ainda capaz de percorrer o objeto.
As crenças naturais do leitor sendo assim, sobre este ponto, abaladas, nos permitem produzir agora a prova teórica adiante.
A distância, por sua própria natureza, não pode nunca ser dada. Com efeito, para conhecer a distância é necessário conhecer um objeto distante, ou seja, tal como não se possa o apanhar, o ter presente, na transposição dum certo número de intermediários, porém se este objeto está distante, é porque não o apanhamos atualmente. E se não o apanhamos como objeto atual, não se pode mais apanhar como objeto atual a distância da qual ele se acha, pois o que é a distância sem o objeto distante? Por conseguinte, a distância não é nunca dada ao espírito, mas ao contrário é necessariamente construída por ela por causa da educação. Por exemplo, na presença dum certo número de objetos não distantes para a visão, o espírito conclui que eles estão mais ou menos distantes para o toque e ele representa está distância, donde resulta para ele a percepção visual do afastamento. A distância não é, então, nunca dada: ela é sempre uma construção do espírito. (1)
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(1)                O leitor, se estiver um pouco iniciado em mais importantes problemas filosóficos, perceberá facilmente o interesse desta análise, fora mesmo da questão especial da percepção. Nós compreendemos, com efeito, agora que nem o espaço, que é o sistema de todas as distâncias possíveis, nem as figuras, que são relações determinadas entre as distâncias, nem a linha reta, que é a distância mesma, nem as paralelas, que não são senão a noção de equidistância de duas retas, nem são dos objetos dados na experiência, mas ao contrário, por natureza, e mesmo na percepção, das construções do espírito, de sorte que o mundo exterior é visto por nós através de um sistema de distancias definida por nós, ou, se nós o quisermos, encerrado em um entrelaçamento de distâncias, ou, se nós quisermos, organizado segundo a geometria. É em que pensava certamente o ilustre filósofo Kant quando disse muito sucintamente, que o espaço é a forma necessária do conhecimento sensível.
Acrescentamos, para terminar de acalmar os escrúpulos do leitor diante de uma afirmação tão paradoxal, que, se a distância fosse dada, dois objetos seriam conhecidos simultaneamente; portanto conservaremos o termo simultaneamente para designar os objetos deste gênero, em exclusão dos objetos conhecidos uns depois mais que outros. Porém, ao contrário, nós apelamos à simultaneidade da sucessão regular, por exemplo, dizendo que tal casa existe ao mesmo tempo que outra, quando nós representamos a nós um caminho seguro e permanente para passar da percepção de uma à percepção da outra. É por isso que nós não temos outro tipo da simultaneidade que a sucessão regular; é por isso que dois objetos não nos são jamais dados simultaneamente; é por isso que a distância não nos é jamais dada.
As consequências desta análise dizendo respeito à distância são muito extensas e mostram por assim dizer delas mesmas.
As dimensões não são, com efeito, senão as distâncias entre certos pontos de um mesmo objeto. O conhecimento das dimensões supõem então esses objetos distintos e de distâncias, ou seja, que ela é adquirida e que supõe antes ela das noções adquiridas. É porque na narração imaginária feita do primeiro despertar do primeiro homem, Buffon não devia ter suposto o conhecimento das dimensões e das formas dos objetos. A forma de um objeto não pode, com efeito, resultar senão do produto de suas principais dimensões e, por conseguinte, o conhecimento desta forma supõe, além do conhecimento das dimensões, um trabalho de comparação destas dimensões entre elas. O conhecimento dos objetos como oblongos, arredondados, planos, etc... é então, também, adquirida e de modo algum imediata e primitiva.
Chegamos agora ao exame das qualidades ditas mais particularmente sensíveis, porque elas se traduzem em nós pelos conhecimentos confusos nos quais a emoção agradável ou desagradável domina.
O peso de um objeto, ou seja, sua propriedade de opor-se sempre no mesmo sentido, uma resistência em nosso movimento, sem mudança na forma, não é evidentemente uma noção simples. Ela supõe a noção de resistência e aquela de direção constante e, por conseguinte, ele não pode ser dado primitivamente: a noção de peso é uma noção adquirida.
A noção de resistência não é tampouco mais simples, nem imediata, nem primitiva: ela se compõe, com efeito, de uma sensação de pressão em certo ponto de nosso corpo, sensação acompanhada da ideia de um corpo exterior que comprime e da ideia de um movimento voluntário de nosso corpo, cujo movimento é causado por uma pressão crescente. Isso supõe que se já temos a ideia de um alvo a atingir, de uma distância a percorrer, de um movimento a fazer, se não podemos, com efeito, querer sem saber aquilo que nós queremos, nem fazer esforço, no sentido próprio da palavra, sem ter um objetivo. Além do mais é necessário ter um conhecimento já preciso das direções para saber se um corpo faz justamente obstáculo a um movimento desejado. Donde resulta que a noção de resistência é muito complexa e que ela supõem várias outras noções pois elas mesmas estão muito longe de ser simples e primitivas. Em se admitindo então que exista uma primeira noção, resultando de nosso primeiro encontro com as coisas, isto não é seguramente a resistência que é esta primeira noção.
Nós chegamos ao mais difícil de nossa tarefa, nas sensações em si mesmas. Como nas sensações, ou seja, de simples modificações afetivas, como a pressão, a temperatura, a luz, o som, o sabor e o odor, elas não poderiam ser primitivamente dadas como uma matéria sobre a qual o espírito trabalha e sobre a qual ele constrói sua representação das coisas? Importa aqui evitar toda a confusão.
Sem dúvida, é necessário que alguma coisa aconteça para que o conhecimento se produza. Mas é necessário também concordar que este acontecimento primitivo não é nulamente constituído por isto que nós chamamos de sensações, esperando que estas pretendidas sensações sejam já, em realidade, das percepções e levando à falta de potência organizadora do espírito. Necessário é, igualmente, admitir-se que o espírito não pode jamais achar nele mesmo seu contrário, ou seja, o irracional absoluto?
A sensação de pressão, tão simples, tão obscura, tão primitiva que se possa supor, não é ainda um ponto de partida, um primeiro termo. Com efeito, é necessário conceber tudo, pelo menos, que esta pressão é sentida em uma região de nosso corpo antes que numa outra; em uma palavra, é necessário que esta sensação de pressão seja localizada mais ou menos vagamente. Porém, se ela é localizada, ela é nem simples nem primitiva, pois a noção de lugar é inseparável das noções de forma e de distância: os lugares não podem se determinar senão pelas distâncias relativas. Também a sensação de cor não existe jamais para nós independentemente de toda a percepção, ou seja, de toda a localização; a cor nos aparece sempre como ocupando, num certo lugar, num certo local, que tem certas dimensões e uma certa forma. Também para todas as sensações, pois os odores são todos, pelo menos, sentidos no nariz, os sabores na língua e os sons na orelha, de sorte que nenhuma sensação não nos é jamais dada sem alguma percepção. Em outros termos, nós não vemos, entre os conhecimentos dos quais se compõem a percepção, nenhum conhecimento que seja realmente primeiro termo; donde é razoável de se concluir que provavelmente não existe ponto em todo o primeiro termo. Sem dúvida, é bem possível, por um artifício principalmente verbal, separar a sensação da percepção e conceber a pura sensação, simples modificação do objeto pensado, simples consciência de uma mudança, completamente indeterminada, mas ele é claro que esta sensação pura é uma abstração, da mesma sem dúvida que este começo que nós procuramos em nossa percepção das coisas.
Quanto nisto que nós chamamos nossas sensações, elas trazem já em um alto grau a marca do poder organizador do espírito. Com efeito, em primeiro lugar toda a sensação, por mais simples que ela se pareça, encerra realmente uma multiplicidade indefinida. Em um som há uma multidão de sons simultâneos e sucessivos, em uma superfície colorida, por menor que seja, há uma multidão de nuances diferentes: nada no mundo é homogêneo. Então não se pode dizer que de tais sensações sejam os dados cujo espírito se apodera sem os modificar; o dado seria aqui uma variedade indeterminada,  porém o indefinido e indeterminado não podem ser alcançados como tais,  e assim isto que nós somos tentados a tomar como uma sensação simples e primitiva resulta, em realidade,  da aplicação da unidade na multiplicidade, ou seja, da própria ação do pensamento.
Além do mais, as qualidades sensíveis, como disse Platão, são por si mesmas indeterminadas: uma luz é deslumbrante ou sombria? Um som é ele agudo ou grave? Ele é agudo se o comparo a um som mais grave, grave se comparado a um som mais agudo; em uma palavra, ele flutua sem se fixar entre dois extremos: o mais agudo e o mais grave. Por isso, a sensação dada no espírito seria indeterminada e já que a sensação real é determinada, isto é, ela é já em parte obra do espírito que, fixando os pontos de comparação e introduzindo no indefinido a medida e a unidade, é somente capaz de dizer isto é isto, e isso é isso: na sensação a mais simples estão já envolvidas de comparações e de afirmações.
Tudo isto que precede ao objeto das sensações pode também ser deduzido desta proposição indiscutível: nós aprendemos a sentir. Se tal azul era um dado, nós o percebemos imediatamente tal como é e sempre da mesma maneira, porém, na realidade, o pintor e o tintureiro chegam pelo exercício a discernir as nuances do azul que eles confundiam de início; inversamente, os daltônicos confundem as nuances que a maior parte dos homens distingue, isto não seria explicável se a cor fosse um dado primitivo, porque seria então crer que o dado não é o mesmo para o daltônico e para os outros: é melhor concluir que o dado é o mesmo para todos, mas que cada um não sabe igualmente bem organizá-lo e interpretá-lo.
Qual é enfim o resultado desta análise? O que fica na percepção que manifesta a natureza do mundo e não a nossa? Resta primeiro a multiplicidade indefinida, que é o contrário do pensamento e a natureza essencial do objeto. Reste em seguida a ordem fixa desta diversidade, ou seja, a necessidade externa que faz que nossas percepções não obedeçam nossa vontade, mas nos impõem de intermediárias necessárias e de caminhos inevitáveis.
Por isso, o objeto dado é expresso inteiramente por esta fórmula de ordem fixa de uma diversidade indefinida de sensações possíveis. O problema da percepção deve por isso ser posto nestes termos: como é possível para um ser perceber em qualquer coisa, o conhecimento de ordem fixa de uma diversidade indefinida causas de sensações? (1)
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(1)                A análise geral da questão assim pensada já tem sido apresentada por fragmentos aos leitores desta revista. Nós remetemos o leitor primeiro ao fragmento 16 de Jules Lagneau e em seu comentário (Revista de Metafísica e Moral, tomo VI, março e setembro de 1898), e também aos diálogos I e IV de Criton (Revista de Metafísica e Moral, tomo I e tomo IV). Nós prosseguiremos aqui, de acordo com o mesmo método, a análise das dificuldades particulares que apresenta o estudo da percepção.




Um comentário:

  1. Audru - sartre e a realidade humana
    - Destaque Pos. 52 a 54 | Data de adição: domingo, 14 de julho de 2013 17h36min46s GMT

    As suas pesquisas descobriram-lhe já certas novas orientações, certos pensadores (1 ) C. R. D., Questions de méthode, pág. 59. 11 postos à margem, ou ainda pouco conhecidos. Revela-se como um leitor atento de Alain, conhece bem La Pensée concrète de Spaier, os estudos de Jean Wahl, os Gestalt-teóricos.
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